Rodrigo Suzuki Cintra

A Galeria Invisível

Livro Online

Para mim não existe diferença entre o sonho e a realidade. Eu não sei nunca se o que faço é produto do sonho ou do estado despertado.

Man Ray

É preciso ter uma ideia do que se irá fazer. Mas deve ser uma vaga ideia. 

Picasso

Loucura sim, mas tem seu método

Hamlet, Shakespeare

Para minha querida Allegra, pois seu papai, com amor e muito carinho, deseja que sonhe sempre o impossível.

Existe um gênero literário clássico, uma antiga técnica grega, chamado ekphrasis, para muitos uma forma morta, que consiste em descrever uma obra de arte com a maior exatidão possível, de modo a tornar factível a quem nunca a viu efetivamente poder enxergá-la com os olhos da alma, como se estivesse bem na sua frente. Há, nessa forma, um exagero de cálculo na descrição. Tratei de compor os textos deste livro, que no fundo é um apanhado de fragmentos, influenciado por essa maneira, se bem que por vezes me arrisque a narrar histórias possíveis ou dissertar livremente sobre o valor de alguma obra específica. Por se tratar exclusivamente de fragmentos que partem de ekphrasis de obras dadaístas e surrealistas, conforme escolhi, certamente a lógica do real, imperativo típico dos homens sem imaginação, cede a um modo de contemplação e composição um pouco mais fantasioso e particular. Por certo que as descrições, as criações e as argumentações que partem desses tipos de obras jamais poderiam ser fiéis completamente se, de algum modo, não fossem ligeiramente malcriadas e não estivessem no limiar entre razão e emoção, precisão e irreverência, sonho e realidade.

O Mês das Vindimas, 1959, (Magritte) Ou Do Lado de Fora de Mim Mesmo

Existem dois homens iguais ao meio de cinco homens iguais. Eles se vestem de preto.

Existem cinco homens iguais ao meio de sete homens iguais. Eles usam chapéus.

Existem sete homens iguais ao meio de onze homens iguais. Eles usam gravatas.

Existem onze homens iguais ao meio de vinte e nove homens iguais. Eles estão em pé.

Existem vinte e nove homens iguais ao meio de vinte e nove homens iguais. Eles estão do lado de fora da minha janela. Mas só um me incomoda.

Celebes, 1921, (Ernst) Ou Breve gesto com Luva Vermelha

Escrito em João Pessoa (07/11/14)

 

I

Um céu com texturas compostas de tonalidades variadas de azul denuncia, por oposição, a terra desolada. 

Apesar de a imagem estar preenchida em quase toda a sua totalidade por uma criatura-estrutura gigantesca e singular, temos a impressão que a área ao seu redor, caso pudéssemos vê-la à distância, seria desértica. 

A máquina-animal que está no centro da cena é particularmente única. Pelo menos, e disso estamos certos, é a única que pode ser vista nas proximidades. 

Há algo de aço na robustez dessa coisa-coisa. E mesmo que exista qualquer elemento orgânico em sua estrutura, isso deve, provavelmente, também ser feito de algum material metálico, sem dúvida. 

Alguns apostam, sem titubear, que se trata de um elefante muito particular. Outros, que é, certamente, um tanque de guerra pronto para o combate. De qualquer modo, veículo ou animal, trata-se de um artefato ou de um ser extremamente curioso. 

Aqueles que sustentam a tese de que se trata de um elefante, apontam para a existência de uma tromba que, curvilínea, causa mais impressão pelo fato de não parecer funcional do que pela sua posição. Ela não parece ter começo nem fim. Está ligada ao mesmo tempo ao corpo do elefante e a cabeça do animal, o que impossibilitaria o seu uso. Mas, parece perfeitamente adequada a composição, apesar de ser, se assim o for, plenamente inútil. 

Para os que estão certos de que se trata de um veículo de combate, é claro que a estrutura curvilínea a que os outros chamam de tromba corresponde ao canhão do tanque. Um canhão meio inusitado pois, a princípio, é menos rígido do que se esperaria de uma máquina de artilharia pesada.

A cabeça da criatura-estrutura possui chifres e dentes de latão e está separada do corpo ligando-se a este pela tromba, ou se arriscarmos outra interpretação, pelo canhão.

Dois elementos, no entanto, chamam atenção e apontam, cada um a seu modo, para interpretações divergentes. Uma espécie de chaminé feita de peças de metal colorido disposta logo acima da estrutura sugere que essa é mais um veículo militar que um elefante em potencial. Porém, em contraposição, do lado esquerdo da criatura, duas presas se projetam do corpo, dando a entender que se trata de um elefante particularmente especial e não de uma máquina de guerra. 

Às vezes, devido à posição das presas, temos a impressão de que a cabeça verdadeira do animal está escondida pelo seu corpo e que o que podemos ver na figura corresponde à sua parte traseira. A tromba, assim, se transforma em rabo e a criatura toda parece ser ainda mais enigmática visto que teria, nesse caso, duas cabeças. 

 

II

Com um gesto gracioso, o corpo da mulher sem cabeça domina o primeiro plano da pintura, apesar de quase ninguém reparar nela. Sua imagem está recortada pela própria tela e seu corpo muito branco, sem sombra de dúvida, está completamente nu. Não há dúvida de que deve ser uma mulher muito bela, mas, de qualquer modo, sua representação completa foi sequestrada pela lógica do quadro. Talvez o gesto que ela faz com um dos braços, delicado e preciso, sugira que se trata de uma bailarina. Inadvertidamente, sempre que estamos em dúvida, pensamos que são bailarinas. A mulher certamente não está inerte e o movimento do braço não poderia estar completo sem aquele gesto absolutamente característico da sua mão que, atrevida e de propósito, deixa-se levar por aqueles modos caprichosos exclusivamente femininos que causam admiração, proporcionam beleza e são extremamente sedutores. É evidente e perceptível que a ausência da cabeça nessa figura não se dá pelo recorte da tela. Sentimos, em um primeiro momento, a sua falta. Porém, a delicadeza do gestual (e os seios perfeitos…) nos cativa logo após um segundo exame e não conseguimos pensar em nenhuma cabeça específica que pudesse ajudar a dar um significado maior para o modo como ela foi representada. A ausência de cabeça, de certa maneira, facilita a imaginação – pois leva a pensar qual rosto de mulher nos vem à mente quando o caso é o de tentar preencher uma face que a própria imagem nos negou. A brancura do corpo da mulher, a perfeição do volume de seus seios e a ausência de cabeça produzem um impacto profundo em quem se propõe a olhar essa bailarina de um modo mais detido. Essas características do corpo da bailarina quase que fazem com que não nos preocupemos em perceber a luva que ela veste em uma das mãos. Talvez fosse possível dizer, por causa disso, que a mulher não está completamente nua – a luva ainda esconde algo de seu corpo. Porém, essa seria uma visão severamente equivocada. Pois é justamente a luva, em cores vivas, a contrastar com a brancura do corpo, que garante a nudez total. 

 

III

 

Ao ocupar quase que a totalidade da tela, a coisa-coisa, criatura-estrutura, elefante-tanque tem matizes escuros, em tonalidades de cinza. Podemos ver toda a sua proporção a partir do ponto de vista em que nos encontramos como observadores. Estamos em ângulo privilegiado, bem de frente para este monstruoso constructo. 

 Sua disposição aponta para a inércia, parece estar parado, e sua estatura e volume, sem dúvida, nos remetem ao peso. Pode bem ser que se trate de uma máquina de guerra singular, um elefante-tanque, e, nesse caso, a impressão de que o cenário para além dos limites da tela, caso pudéssemos vê-lo por completo, seria de pura desolação confirmaria a sensação de que a estrutura em questão serve mais à destruição do que à vida.

Sua existência, como potencial máquina de guerra, uma estrutura do extermínio, é intrigante porque estranhamente dá a sensação de operar de maneira autônoma, sem intervenção humana. Como se fosse uma mecânica que, de alguma forma, se bastasse.

A mulher-bailarina é branca. Muito branca. Seu corpo está incompleto, em muitos sentidos – a mulher não é retratada da cintura para baixo. Inclusive, estar ao mesmo tempo dentro do campo de visão do observador e fora de seu campo de visão, é estratégia fundamental para destacar sua movimentação. Ela está na extremidade direita da pintura, mas em primeiro plano, e contrasta visivelmente com a centralidade do tanquedeguerraelefante. Tudo nela aponta para um suave deslocamento. Bem pode ser que ela esteja ensaiando para uma apresentação de balé. 

A estrutura ao centro é, sem dúvida, composta de aço, metal e ferro; já a bailarina, é feita de carne e sua estatura pequena, leve e magra entra em conflito com o tamanho avantajado, o peso e o porte avolumado da criatura.

Mas, se a contradição é evidente, não se sabe ao certo se é a possibilidade de dança ou a possibilidade de destruição o que está fora do lugar na tela.

E, talvez, alguns críticos mais atentos sugiram que, no fundo, as duas hipóteses correspondem à mesma coisa na lógica da composição. 

 

IV

Em um céu de texturas elaboradas em tonalidades variadas de azul, em uma terra desolada, em um solo em que a sombra nada revela, ao meio de três elementos viris que brotam do chão, entre um peixe e outro voando no céu, entre o cinza e o branco, peso e leveza, inércia e movimento, aço e carne: a tensão entre a tromba e o seio.

Personagem a uma janela, 1925, (Dali) Ou Uma ideia extravagante

I

 

As ondas do mar, a passagem das nuvens no céu, o vento a produzir vincos nas cortinas, o movimento do vestido, tudo isso foi pintado apenas para combinar com os cachos do cabelo.

 

II

 

Ela é bela. E seu retrato é feito às avessas. Em um retrato pode ser possível exprimir toda a biografia de uma pessoa. Os retratos são imagens que descrevem a expressividade. Em todos os casos, são a representação da face e, às vezes, da visão frontal do corpo. Ela, no entanto, é retratada de costas. Há uma originalidade nisso porque, com efeito, a ideia parece dar certo. Seu retrato está nos cachos malcriados de cabelos escuros, no modo como uma de suas pernas se dobra gentilmente para trás e fica na ponta do pé, o que lhe dá um ar de mulher fantasiosa. Na maneira como ela apoia firmemente os dois braços na janela para olhar – como todos os dias faz –, para fora de casa. No modo como o corpo bem esculpido modela um vestido barato qualquer. Nas pernas parcialmente descobertas, mas que apontam suficientemente para sinuosidades e que nos dão vontade de imaginar como seria o resto do corpo sem o vestido. Em uma cintura mais fina que os glúteos absolutamente carnudos e sugestivos. 

É o retrato de uma mulher possível. 

Porém, não conhecemos ninguém exatamente assim e tudo que podemos fazer é contemplar a imagem e sonhar com um encontro inesperado e improvável com uma personagem que habita exclusivamente o mundo das representações.  

 

III

 

É preciso conter o mar, enquadrar o céu, impedir a ação do vento, enfim, desrespeitar, no recorte da janela, a plenitude de todos os elementos essenciais, mas representar a suavidade tensa dos cachos do cabelo enigmáticos, a paixão inesperada de glúteos convidativos e a imaginação infinita de um pé direito sonhador. Uma ideia realmente extravagante seria beijá-la nervosamente na nuca, se perder nos cabelos encaracolados, levantar parcialmente seu vestido e colocar seu corpo na ponta dos dois pés.  

Rrose Sélavy, 1920/1921, (Duchamp/Man Ray) Ou Mulher de Tempo Lento

I

 

O chapéu é por demais inusitado, personalíssimo, e chega mesmo a ser ousado, quase insolente, se levarmos em consideração o fato de que é composto basicamente por figuras geométricas dispostas de uma maneira aparentemente aleatória.

Claro que isso já é uma forma de impostura, uma vez que toda geometria que se pretenda aleatória é, em verdade, a própria negação da geometria. Há sempre um princípio organizador nas formas geométricas, elas são avessas ao caótico, de modo que basta decifrar sua lógica interna para inviabilizar a sensação de que essas formas possam ser dispostas sem alguma espécie de simetria própria. 

Porém, os desenhos no chapéu dessa mulher-enigma, basicamente compostos pelas ocasiões do negro no branco ou vice-versa, são misteriosos a seu modo e decifrar o seu padrão é tarefa difícil.

As figuras no chapéu parecem escapar – quando fixamos uma das formas, outra delas dá a impressão de sorrateiramente começar a se ocultar. 

Por isso, talvez, alguns dizem, inclusive, que estabelecer como se deslocam essas formas, essa brincadeira de esconde, é a melhor maneira para começar a compreender essa mulher.

Existe, na essência do chapéu, um jogo geométrico entre o visível e o invisível que potencializa o caráter misterioso da fotografia. Mas, obviamente, os defensores dessa tese – os “analistas do chapéu” (como ficaram historicamente conhecidos) – são aqueles mais tendentes a matematizar a condição humana, e se esquecem, com frequência, de investigar, na sua ânsia por delimitar quadrados, retângulos e triângulos, outros aspectos da imagem desconcertante da mulher na fotografia. 

 

II

 

Olhar o próprio observador, perfurar o espectador, olhar para além e não enxergar propriamente ninguém.

 

III

 

Há algo naqueles dedos que sugere indiscutivelmente a feminilidade. Não é, como poderia se pensar, o fato de serem menores e mais finos que os dedos dos homens, com suas mãos maiores e mais brutas. Tampouco é a presença dos anéis o que nos certifica que se trata de uma mulher. 

É o modo como foram capturados pelo instantâneo. 

Levemente dobrados, sutis, delicados ao tocar o casaco de pele. Dedos que sugerem movimentos mais suaves, talvez menos bruscos. Dedos que fazem manha, que delongam as ocasiões, e que são menos objetivos ao cumprir a tarefa de levantar a gola do casaco de pele. Dedos de tempo lento, habituados aos caprichos próprios à atuação, sempre demorando em completar cada movimento, como se cada ação fosse uma espécie de performance. 

 

IV

 

Somente uma lente objetiva poderosamente aguçada poderia registrar o exato segundo em que Rrose está propositalmente se atrasando alguns breves instantes para fazer qualquer coisa absolutamente irrelevante: tudo se passa efetivamente na cadência distendida de um momento meticulosamente alargado. 

 

V

 

Toda e qualquer mulher, de maneira absolutamente manhosa, atrasaria o ato de arrumar o casaco de pele apenas alguns breves instantes só para ser registrada na fotografia como uma mulher ligeiramente manhosa atrasando o ato de arrumar o casaco de pele apenas alguns breves instantes antes de fazer alguma coisa de importância sabidamente superestimada. 

 

VI

 

É preciso não estar entendendo absolutamente nada se o caso é o de indagar se a mulher da fotografia é uma atriz ou não. Se ela está indo ao teatro ou se acaba de sair de cena. 

Em um sentido muito particular, toda mulher é ela mesma e, ao mesmo tempo está sempre em cena. 

O mais interessante da fotografia, na verdade, é outra coisa.  

Ela enigmaticamente nos lembra de algo sobre as mulheres que vez ou outra deixamos escapar e que pode passar despercebido inclusive por elas, acostumadas a simplesmente agir da maneira habitual. A fotografia é de Rrose, mas bem poderia ser de qualquer mulher representada em um momento em que se arquiteta propositalmente, mas de maneira natural, as formas corporais e espirituais que compõem aquilo que chamamos de feminilidade.

Talvez o segredo dessa fotografia seja que ela consegue retratar perfeitamente, na captura do instantâneo, uma mulher em um momento de verdade absoluta. Em performance ou não, o que no fundo é a mesma coisa, a mulher que busca a plenitude feminina é aquela que não se cansa de atuar, no teatro da vida, de acordo com aquele sonho maravilhosamente impossível que ela mesma inventou para si. 

A reza, 1930, (Man Ray) Ou Como Contar os Dedos do Pé com o Próprio Cu

Entre o claro e o escuro há um pouco de corpo. No escuro, nada podemos ver; no claro, vemos demais. 

O erotismo é uma arte traiçoeira. Pode parecer, à primeira vista, que consiste em mostrar sem revelar a imagem por completo, mas, na verdade, consiste em um jogo de esconder. É o que se oculta que provoca o desejo, não o que se mostra visível. 

Esta fotografia, no entanto, é erótica às avessas. 

O corpo se contorce e dobrando-se sobre si mesmo dá a impressão de uma posição que, se não for impossível, é certamente improvável. Toda a obscenidade da imagem não está no que não vemos. De maneira desconcertante, é exatamente o que encobre os orifícios deste corpo o que faz a imaginação flutuar. O inusitado é que, neste caso singular, o que se vê claramente é que remete ao erótico.

Pois, há algo de excessivo em todos aqueles dedos. 

Os orifícios cujas imagens nos são negadas, que poderiam apontar para o apelo sexual do instantâneo, não são, a bem da verdade, o que importa na representação. São os dedos, escancaradamente nítidos, que provocam o pensamento a tomar certas formas mais sensuais.

Os glúteos, são excessivamente redondos. Também são demasiadamente brancos. Lembram uma maçã que perdeu a cor. E na composição da totalidade da imagem, junto aos dedos que estão em escala de cinza, correspondem a uma corporalidade quase que meramente sugerida. Mas, a imagem está perceptivelmente completa, mesmo que tenha algo de menos corpo no que foi retratado. 

Os pés estão juntos, mas os vemos pela metade. Estão profundamente inertes. É a sombra dos glúteos o que os coloca no limiar entre o claro e o escuro. Porém, podemos ver todos os dedos. Existe algo de profundamente obsceno em tentar contá-los. É no momento exato em que examinamos se todos os dedos estão aparentes que somos pegos por uma sexualidade menos sutil e mais evidente. Todo escândalo que advém desse jogo de somar os dedos dos pés consiste, paradoxalmente, no fato de que, nesta imagem, é o esforço de minúcia, que induz ao sexual. Na foto, os pés e as mãos são de uma nudez mais provocativa do que os orifícios que tentam esconder. É preciso perceber isso. Por trás das mãos e pés, que inclusive nos enganam quando pretendem não ter nada a ver com a posição corporal inusitada, algo de sexual se insinua.  

O sexo está no detalhe. 

As mãos que pretendem esconder os orifícios são quase que exclusivamente dedos. Dedos que, ao contrário dos pés, podem se movimentar. A imagem é estática, como não poderia deixar de ser, mas, o sugestivo está justamente em imaginar estes dedos em movimento. Dedos que tentam nervosamente esconder o sexo. Existe, inclusive, uma vontade de que os dedos, dada a posição que estão, não consigam cumprir seu papel no jogo de esconde e fiquem se movimentando, uma mão sobre outra, de modo que quando conseguem cobrir uma parte do sexo, acabam, invariavelmente, por deixar outra parte comprometedora descoberta.  

Além disso, não é exatamente alguma forma de toque o que precipita uma fantasia mais imaginativa. É a disposição dos dedos.

Dedos sobre dedos. 

As mãos podem até ser nervosas, mas os pés são calmos. Reclinado como em uma forma de reza, o corpo é contraditório. Os pés juntos, com seus múltiplos dedos, podem até sugerir ave-marias se o caso fosse o de rezar. Se não provocassem, maliciosamente, na sua visão, certa inclinação para verificar se todos os dedos estão realmente ali. Mas as mãos, com a sobreposição de dedos sobre dedos, denunciam evidentemente, certas vontades menos religiosas.

Canção de Amor, 1914, (de Chirico) Ou Gesto com Luva Vermelha (variação nº 2)

Talvez se o busto de Apolo estivesse completo, com ombros e tudo, a luva cirúrgica não precisaria ficar pregada na arquitetura de uma construção geométrica. Não seria, obviamente, possível colocar a luva na escultura, afinal, bustos não têm mãos, mas pode ser que a luva vermelha ficasse solta nos ombros invisíveis de Apolo. 

A luva de borracha nos incomoda, sobretudo por ser vermelha, acostumados que estamos com uma higiene que embranquece o vestuário. Mas, ela não é o único objeto de borracha. A bola também aparenta ser feita desse material e, ali, inerte, nos induz a pensar em movimentos maiores. 

De certo modo, a bola de jogar parece caber perfeitamente na luva, como se pudéssemos segurar o brinquedo com apenas uma das mãos. Este senso de proporção acompanha o tamanho do busto. Seria possível, inclusive, usar a luva para dar um estalo na face insensível de Apolo, forçando esse Deus a demonstrar sentimentos humanos. Aquele que leva um estalo na face sempre demonstra alguma espécie de sentimento humano. 

Evidentemente, a construção geométrica que está em segundo plano do quadro é demasiado pequena, se compararmos com o tamanho dos demais objetos. Mas, sem dúvida, é o único elemento da composição que está verdadeiramente do tamanho real. 

O modo como a luva de borracha vermelha está pregada à construção é algo que incomoda. Por certo, um prego de aço é exagerado para segurar o peso de uma mera luva vermelha. É exagerado porque ela é vermelha, não por causa de seu peso.   

A bola de jogar dá a impressão de que é preciso fazer alguma coisa com ela. Porém, é perfeitamente descartável. E se fosse preciso pintar o quadro mais uma vez, de modo absolutamente fiel à primeira versão, uma cópia completamente exata, uma segunda tela somente seria a representação adequada da original se jogássemos a bola fora. 

Isso é verdade. 

Não é, no entanto, por ser de borracha, nem por ser verde, que a bola é descartável. É porque ela tem um segredo, na sua inutilidade dentro da composição, que transborda o sentido da pintura como um todo. 

Se a bola de jogar fosse parar em outro quadro, uma representação exclusiva da bola de jogar, uma representação verde, como não poderia ser diferente, uma vez que é uma bola de jogar, teríamos um quadro que incomodaria mais que esta Canção de Amor. Isto porque a bola tem um segredo, na sua inutilidade dentro da nova composição, que transborda o sentido da pintura como um todo. O problema é que a pintura como um todo seria somente a representação da bola de jogar verde. Este é o segredo: a bola de jogar é verde. 

Existe música na pintura. Trata-se, sem dúvida, de uma canção de amor. Não é o estalo na face do busto de Apolo (inadvertidamente, esta ideia é tentadora) o que pode produzir a sonoridade, provocando este Deus a se manifestar. Há algo de divertido em estapear os deuses. É o trem que passa que produz toda a musicalidade. É uma música por demais urbana, pois representa os amores na solidão das metrópoles. O ritmo da passagem do trem, um som contínuo e sedutor – uma marcha – essa é a melodia da canção. Mas, é preciso estar atento para o fato de que no exato momento em que vemos o trem ao fundo do quadro, no instante preciso em que sua presença se faz sentir, quando percebemos que a pintura estaria incompleta sem a sua representação, ouvimos, nitidamente e sem maiores avisos o seu apito. 

Este apito, singularmente curto, corresponde ao refrão da canção.  

Algo preocupa muito na lógica da compreensão do quadro. É certamente uma questão essencial e, pode-se dizer que, após o som do apito, naquele momento em que percebemos o trem, acaba por nos intrigar profundamente pois diz respeito à direção que devemos tomar nas questões amorosas. Pode ser que seja, inclusive, o mais importante da composição: não dá para saber ao certo se o trem, ao fundo da tela, produzindo fumaça, seguirá para a esquerda ou para a direita.  

Golconda, 1953, (Magritte) Ou Chuva de Mim Mesmo

I

 

Um dia desses, essa quase interminável chuva de mim mesmo, essa intempérie inesperada promete acabar e poderei verdadeiramente flutuar de forma livre ainda que fragmentado em gotas de mim – serei composto de partículas bojudas que não cairão mais das alturas, mas ficarão suspensas como balões estáticos. Inertes. Simplesmente pairando em pleno ar.

Nessa ocasião, me tornarei mais próximo daquela promessa que fiz a mim mesmo – o homem que eu queria ser antes da chuva começar. Não poderei voar, essa é uma das minhas mais tristes certezas, mas, pode ser que seja um pouco mais feliz. Pelo menos não precisarei me preocupar em derramar mais tanto de mim.

 

II

 

Somadas as características essenciais, todas as variações, são poucas as diferenças entre as possibilidades.

Em 71 casos, pode-se ser original. Em 50, a divisibilidade é por 2, 5, 10, 25 e 50 (ser divisível por 2 é um dos principais defeitos da imagem).

Segundo o cálculo de alguns, é possível que se caia dos céus 121 vezes. Mas, ascender às alturas somente se dá em 29 casos.

De qualquer modo, o sobretudo e o chapéu sempre ajudam: é evidente que, mais uma vez, se esquece o guarda-chuva em casa.

 

III

 

Pode bem ser que a tela capture um momento, apenas um instante, de um movimento constante. Do céu para o chão, pingam homens vestidos de sobretudo e chapéu escuros; ou, do chão para o céu, ascendem homens a desafiar a gravidade.

Se assim for, de qualquer modo, nada nos indica a velocidade do movimento, e fazer o quadro ganhar vida em nossa imaginação não garante, necessariamente, uma compreensão maior sobre sua estrutura. 

Ao olhar a imagem de longe, os inúmeros homens que compõem a tela parecem ser apenas borrões. Gotas negras a manchar o céu e os pequenos prédios de apartamentos: ocasiões do negro em um céu azul sem nuvens, em um telhado avermelhado sem telhas e em paredes de prédios cinza-claros sem portas visíveis.

O escuro se repete, inclusive, como mancha do próprio borrão, pois, se observarmos atentamente, os homens vestidos de negro provocam sombras nos prédios que denunciam a presença do sol.

De fato, é curioso que ninguém se atreva a abrir as janelas e que mesmo as cortinas fiquem quase completamente cerradas. Não há, aparentemente, um lado de dentro dos prédios que possa ser verificável. A lógica da imagem é completamente externa aos prédios, com os enigmáticos homens a borrar os outros elementos. 

Meramente suspensos, caindo dos céus, ou ascendendo às alturas, os homens parecem ser repetições de um mesmo personagem. Multiplicado infinitamente – tudo nos leva a crer que é impossível contar quantas variações do mesmo homem aparecem no quadro – o personagem parece não passar por nenhuma transformação em nenhuma de suas aparições, se bem que, dependendo da ocasião, apareça sob ângulos diferentes. 

Apesar de não ter, aparentemente, nada em comum com a maioria dos observadores da imagem, ele provoca identificação. Há algo nele que nos remete a nós mesmos. Não é o chapéu, nem mesmo o sobretudo, o que leva a essa sensação. É a repetição infinita que nos induz a essa tendência. Apesar de ser uma afirmação arriscada, que quase não se propõe, há algo de espelho nessa infinidade de figuras absolutamente idênticas. Mas, isso não quer dizer que esse personagem provoque os mesmos significados para cada um dos observadores da imagem. 

Os homens mais imaginativos pensam que esse homem está suspenso no ar, flutuando como uma bolha de sabão, e que bem que gostariam de experimentar essa sensação de leveza absoluta. 

Os religiosos imaginam que estão subindo da terra aos céus. Veem nessa possibilidade alguma espécie de revelação mística e ficam contentes com a imagem toda, convencidos de que encontrarão a salvação. 

Os homens que têm demônios internos mais frequentes somente conseguem imaginar a si mesmo caindo das alturas e se sentem incomodados com a ideia de que se espatifarão completamente pelos chãos. 

E existe também aqueles observadores que ao olhar para a imagem não conseguem enxergar outra coisa a não ser a possibilidade de voar. São os homens de imaginação mais solta, que encontram na arte sempre alguma possibilidade de libertação.

No que me diz respeito, só uma coisa me incomoda de verdade. Nessa infinita multiplicação de mim mesmo, em todos os casos, eu continuo sendo eu mesmo. 

Roda de Bicicleta, 1913, (Duchamp) Ou À Sombra da Arte de Obra

I

 

A arte é tudo que for o caso. 

Esta roda de bicicleta disposta sobre um banquinho branco é perfeitamente inútil. 

Este banquinho branco sob uma roda de bicicleta é perfeitamente inútil.

Talvez tivessem utilidade prática como objetos de indústria se estivessem separados, mas daí não fariam uma sombra, dependendo do ângulo da luz, absolutamente improvável. 

Se os bancos servem para se sentar e as rodas de bicicleta para se mover, existe algo nesta construção que não leva a nenhuma dessas possibilidades. Esta montagem é contraditória: há algo nela de potência de movimento, mas está profundamente inerte.

Não é bem uma escultura o que se propõe, apesar de situar-se no espaço. É um evento singular. Um evento do novo. Na física, os eventos são quadridimensionais. Somam à altura, à profundidade e à largura, o tempo. Os eventos situam hora e local. Esta Roda de Bicicleta é um evento malcriado. Situa-se no espaço, mas nega a inércia e também o movimento. Seu tempo é sempre o do instante. Mas, bem pode ter sido ontem e, sem dúvida, persistirá para amanhã e depois. 

Sem ser escultura, a montagem, que não tem assinatura aparente, causa impacto por ser, em sua materialidade dos usos cotidianos, apenas uma justaposição vertical. Trata-se de um deslocamento, este de ser outra forma de arte, que devolve a ela a sua dimensão mais importante: um certo ar de escândalo. Sua força artística está em uma rejeição: se nega a ser objeto de consumo ou de indústria, apesar de ser composta por elementos de consumo e indústria.

É só uma ideia. 

A luz do ambiente, com o passar do dia, provoca transformações na sombra desta peça. É curioso olhar para arte por meio de sua sombra. Há algo de original nisso também. A luz, dependendo do horário, incide sobre a montagem com ângulos e intensidades diferentes. O que provoca as mais variadas formas de distorção em sua sombra. E pode se ter a nítida impressão que a obra tem vida; pois sua sombra se movimenta, aumenta de tamanho, diminui, fica mais evidente ou se apresenta quase como uma mera sugestão de sombra.

Olhar para essa justaposição inaugural de um novo modo de fazer arte, por meio de sua sombra, é como que investigar os rastros que formalizaram a estrutura como ela é. Escura, mutável, irresponsavelmente avessa à ideia de representação dos elementos da composição, a sombra, misteriosa, sempre nos prega peças se o caso é tentar entender a obra a partir dela. 

A sombra é estar ali e aqui.   

A sombra é um antes e um depois. 

Um banquinho e uma roda de bicicleta são o que são e ainda assim.

 

II

Uma roda de bicicleta preta é uma roda de bicicleta preta.

Um banquinho branco é um banquinho branco.

Uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco não é uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco.

 

III

 

Não podemos sentar nesta roda de bicicleta ou pedalar de banquinho. Juntos, estes dois elementos são, em verdade, um novo elemento.

Quem sabe alguém que passe andando por esta estrutura se negue a perder tempo para entendê-la. Quem sabe a peça não desestabilize mais as formas prontas dos críticos mais respeitados. Talvez as crianças desejem brincar com a coisa toda e os adultos, secretamente, pensem serem capazes de criar coisas do gênero.  

Dizem que é perfeitamente possível repetir esta montagem infinitamente. Um diâmetro de roda de aproximadamente 64 cm. Um banquinho de aproximadamente 60 cm. E basta colocá-los na posição indicada. O seu truque escapa à lógica da arte tradicional que evita a imitação. Pois, trata-se, em todo caso, sobretudo, de um conceito.   

É claro que ocorre de imitadores fazerem justaposições variadas de outros objetos de indústria, às vezes, até mesmo elaboradas, porém, dificilmente conseguem o mesmo efeito. 

Escritores excêntricos tentam, sem sucesso, descrevê-la da melhor maneira possível. Há sempre uma perda. Obviamente, como não poderia ser de outro modo, algo escapa às palavras e tudo que se pode fazer é contemplá-la.  

Mas, um pensamento radical é deixar a Roda de Bicicleta como está. Perdida em um dos salões de galeria. Apenas mais uma peça entre peças. Deixá-la, ali, esquecida em sua improbabilidade.

Deixar que a luz do ambiente modele sua sombra. Aguardar que a luz solar projete no chão e na parede uma imagem como em um relógio de sol. 

E, inevitavelmente, perceberíamos em sua sombra o movimento lento do objeto estático. Criando caso, certamente, pois, em verdade, sua sombra é, sempre, um momento do agora. 

 

IV

 

A sombra da roda de bicicleta preta não é a roda de bicicleta preta.

A sombra do banquinho branco não é o banquinho branco.

A sombra de uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco é uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco.

 

V

 

Já pensei, algumas vezes, em tentar derrubar a famosa justaposição. Duvido que a roda de bicicleta esteja solta sobre o banquinho. Civilizado, quando a vi pela primeira vez, tentei soprar o mais forte que conseguia, um sopro de plenos pulmões, para ver se a estrutura se movia de algum modo. 

Mas, a roda simplesmente não se movimentava.

Depois, acabei por perceber que, mesmo que conseguisse destruir a lógica da estrutura, sua sombra provavelmente não se alteraria. Ficaria ali, enigmaticamente, colada ao chão. 

Trata-se de uma obra que não proporciona qualquer concessão. O sucesso na destruição em nada modificaria a sua força e o seu alcance. Sua sombra já estava impressa na minha mente e na história da arte.

Curiosa maneira de perceber que a arte é uma forma absoluta de dizer “não”.

O Mundo Perfeito, 1962, (Magritte) Ou As Cores do Mistério

I

 

Um quadro singelamente bicromado: azul e branco, sem dúvida. 

Toda a astúcia da tela, que é um jogo de enganar, consiste em posicionar o olhar a partir de uma dessas cores. Sobrepostas, elas dão a impressão de profundidade à lógica de uma estrutura paradoxal. E somos tentados, constantemente, a determinar qual das camadas corresponde à verdadeira imagem de um céu que se desdobra e se reproduz a cada novo lance de olhos que empreendemos para tentar compreender a coisa toda. 

Pode ser que realizar um olhar a partir do azul garanta algumas certezas. 

A diferença de tonalidade dessa cor nos elementos que compõem a pintura certamente ajuda a identificá-los e, se isso não proporciona a descoberta de alguma verdade radical sobre a tela, pode auxiliar a delimitar os problemas que um intérprete pode encontrar pela frente. Pelo menos os problemas decorrentes do olhar azul, como podemos chamar. 

O chão, a parede e a cortina são plenamente identificáveis, possuem tons de azul diferentes, mas um rouba a cena do outro. Pensamos constantemente em que lugar, em qual destes elementos, está o verdadeiro céu. Um céu que pode muito bem ser impossível de se determinar, que é quase que apenas intuído, mas que invariavelmente não cansamos de tentar delimitar. 

Bem pode ser, no entanto, que sua função na tela seja outra – impedir profundamente que enxerguemos além. Obstáculos sucessivos a que olhemos diretamente para a imensidão do azul. O curioso, nesse sentido, é que eles são feitos do próprio azul cujo olhar inviabilizam. 

É possível, também, uma contemplação que privilegie a cor branca. 

Ela opera, nesse caso, de modo muito mais fugidio. Ao contrário do azul, feito de linhas retas, o branco é disforme e, além disso, espalhado pela tela em muitos lugares, mais mancha o azul do que propriamente se afirma como um elemento próprio. As diversas manchas, aliás, podem aparentar unidade em sua disposição aleatória, em seus formatos irredutíveis à geometria, mas, talvez, sejam plenamente singulares em cada uma de suas aparições. 

Se o azul é estático, o branco só se propõe nessa tela como movimento. Seus momentos são sempre de leveza. O branco pode estar na pintura de um modo absolutamente perceptível, determinado, de um modo que pensamos poder registrá-lo em nossa mente sem dificuldades. Mas, qualquer distração, qualquer desvio de olhar, tornará impossível enxergá-lo duas vezes do mesmo modo. As ocasiões do branco nos pregam peças e fogem do nosso olhar repetitivo. Cada experiência com essa tonalidade, que é quase que a negação da própria tonalidade, é única e, portanto, exige de nós, não concentração – o que de nada ajuda nesse caso – mas, uma forma de respeito toda particular. O branco pode não preencher o céu em todos os casos, sempre haverá dias sem nuvens, mas certamente é o que dá sentido ao céu que está para além do imenso, que inscreve seu registro para depois da finitude.  

 

II

 

A maçã é verde, mas na verdade é azul. 

Disposta diretamente no chão, ela é um dos elementos azulados da pintura. Trata-se de uma maçã perfeitamente desenhada. Os matizes de seu azul são pintados ao nível do detalhe. Ocupando o primeiro plano da tela, ela projeta, inclusive, uma sombra que, como não poderia deixar de ser, também é azulada. Um azul quase que meramente sugerido, na medida em que as sombras têm por hábito serem negras. 

Ali, no espaço do azul que parece ser imenso, um azul que se aprofunda a cada olhar, a maçã se situa em posição estratégica. É a primeira camada da representação do céu. Ela, de certo modo, o integra e o inicia e sua função é puramente enigmática. Entendê-la é como que desvendar um segredo. O segredo dos céus propriamente dito.   

Isso é: uma metáfora.

Todo céu é um mistério. 

 

III

 

A maçã é verde, mas na verdade é branca.

Uma nuvem branca estranhamente estática, avessa a sua própria natureza, com um formato peculiar de maçã, com cinco folhas esbranquiçadas num galhinho, e que contrasta com o azul do céu que quando olhamos muito fixamente parece curiosamente se mover.

Todo branco lembra nuvens. Mas, quando se trata de nuvens propriamente, nunca podemos saber ao certo. Nuvens são sempre outras possibilidades de si mesmas. E os formatos dessas manchas no universo da composição da tela podem lembrar muito bem uma coisa ou outra. O branco é infinito a seu modo, de uma maneira um tanto caprichosa.

Isso é: uma metáfora.  

Toda nuvem é uma metáfora. 

 

IV

 

A imagem é muito bem desenhada: um círculo perfeito. Está disposta no chão azul, o que pode sugerir, num lance de olhos, a sensação de certa imobilidade. Sua inércia, porém, é algo duvidoso dentro da estrutura da pintura – pois sua sombra, mesmo que vagarosamente, provavelmente se movimentará. Mas, isso não é o que incomoda quando pensamos no assunto de maneira mais detida. 

O azul está em todo lugar. Só é interrompido por aquelas manchas brancas – as que podem bem ser nuvens, o que quer que isso signifique efetivamente. 

Um exercício interessante, no entanto, seria o de colocar o quadro de ponta-cabeça. Nada se alteraria verdadeiramente, se assim o fizéssemos, a não ser o círculo em primeiro plano. O azul e o branco continuariam com a mesma lógica de sempre e pode até acontecer de observadores desavisados nem perceberem a mudança.

A pintura ainda estaria completa a seu modo – tudo se passa apenas no choque entre as cores.

Mas, se assim fosse, a cor do círculo perfeito – azul ou branca – pediria maiores explicações. Seria o caso de pensar se, de fato, se trata de uma lua ou um sol, essas esferas que reinam nas alturas. E é claro que haverá sempre quem insista, sem maior sucesso, que a lua não é azul e o sol não é branco. O que mostra, no fundo, que muitos não conseguem nem determinar, ao certo, qual é a cor de uma simples maçã.   

 

V

 

Por trás das nuvens do céu há cortinas que nos impedem de ver mais além. E todo o problema consiste no fato de que mesmo essas nuvens, vez ou outra, também são feitas de cortinas. 

Cabide, 1920/1921, (Man Ray) Ou Medo de Brinquedo

Uma mulher por trás de uma boneca de cartolina. 

À primeira vista, pode-se pensar que se trata de uma colagem, mas, o exame mais detido evidencia que é uma fotografia.

É importante perceber, nesse caso, que se trata de uma fotografia. Pois, inadvertidamente, é uma imagem que causa impacto por suas ambiguidades, por sua improbabilidade extrema enquanto um instantâneo do real, por uma estruturação do elemento que se pretende representar radicalmente misteriosa.

Não há como não sentir algo de perturbador na imagem. 

Sua incompletude, seu modo de mesclar o corpo humano com a cartolina, um modo de representar o feminino que se dá estranhamente entre o que se vê e o que se esconde, o que está na frente e o que está atrás, tudo ali provoca incômodo.

Não é exatamente o fato de existir potencialmente uma mulher por trás da cartolina o que causa essa sensação particular. Tampouco é a cartolina à frente da mulher que induz a certa rejeição. É a fusão desconcertante entre o que é vivo com o que não tem vida o que nos deixa perplexos. Pois, nossos olhos se alternam, demasiadamente e sem autorização, entre o corpo nu e a boneca de cartolina. E é nos momentos em que se percebe esses dois elementos em conjunto que ficamos completamente estarrecidos por estarem escandalosamente em uma pretensa harmonia na fotografia. Ali, a tensão entre o orgânico e o inorgânico obriga a buscar significados e estabelecer conexões de sentido de modo a tornar possível suportar essa composição absolutamente inusitada.

A sensação geral, ao olhar para obra, é tão particular que, apesar da modelo por trás deste singular cabide estar nua, deixando à mostra os seios, o sexo e seus contornos curvilíneos de mulher, não sentimos qualquer espécie de ímpeto sexual. 

Alguma coisa na fotografia inviabiliza o desejo. 

O recorte da cartolina que acaba por representar os braços, os ombros, a cabeça com olhos, boca e cabelos de uma boneca pode parecer, inicialmente, uma representação mais infantil, porém, no entanto, é perturbador demais para ter sido feito por crianças.  

A boca desta boneca é demasiada pequena e, se somar isso à ausência de nariz e aos cabelos desenhados de um modo singelo, temos um rosto de boneca quase que esquemático. É claro que os olhos completam a equação da face particular da boneca de cartolina. Muito abertos, dão a impressão de olhar diretamente para frente e além. É um olhar por demais profundo, é bom que se diga, e parece, inclusive, trespassar a estrutura da fotografia e enxergar o próprio sujeito que está a observá-la. 

Por certo, o cabide vertical que sustenta a estrutura de cartolina garante que a imagem pareça não ter movimento. Além disso, a brancura do corpo e da cartolina contrasta com o fundo da fotografia que é profundamente negro. Essa escuridão é um truque de luz e, ao mesmo tempo, é contagiosa. De algum modo, absorve parte da perna direita da modelo. E ficamos sem saber ao certo se a perna foi apenas sequestrada pela lógica da escuridão do fundo da imagem, ou se a modelo já não tinha esse pedaço do corpo desde o princípio. 

A cartolina disposta à frente do rosto e dos ombros da modelo esconde completamente o semblante da mulher real, funciona como uma máscara, e tem traços de boneca inerte que contrariam o corpo vivo e em evidência do resto da composição.

Porém, sequer é possível dizer, seguramente, para falar a verdade, que a boneca de cartolina é que encobre a mulher real. Talvez o rosto e os ombros da modelo também não apareceriam se o caso fosse o de retirar a boneca de cartolina da sua frente. Tal qual a perna pela metade, nada garante a completude da modelo acima dos seios. Pode bem ser que se encontrasse escuridão também por trás do lugar que a boneca ocupa na fotografia.

Esse é um tipo de pensamento coerente com a lógica interna desta fotografia, não há dúvida, mas, profundamente improvável para falar a verdade. 

Porém, não são essas possibilidades que causam a sensação mais estranha quando se trata de observar atentamente a lógica da foto. Existe algo na estruturação dos elementos internos dessa representação que provoca, inadvertidamente, um pouco de medo. 

Pode ser que essa sensação se origine em um movimento de nossa imaginação. Se pudéssemos retirar a boneca feita de cartão da frente da modelo e assim fosse possível enxergar a mulher por completo, em toda a sua vivacidade, com pernas, sexo, seios, ombros, pescoço, boca, cabelos, ela seria uma pessoa real, alguém que efetivamente pertence ao mundo. Ou seja, tiraríamos da fotografia seu caráter mais inusitado e a reduziríamos a uma mera representação singela de uma modelo. 

E todo problema, o que nos aflige nos momentos em que deixamos a imaginação correr solta, consiste no fato de que, mesmo tendo sido retirada a boneca da frente dela, como a retirar uma máscara, essa mulher por trás da cartolina, estaria, inevitavelmente, a olhar diretamente para o espectador, ainda com aqueles olhos inertes de boneca.  

E a dúvida que apareceria, se assim fosse, não seria mais a proposta da foto (o que há de mulher por trás de uma boneca), mas, inversamente, o que há de boneca por trás de uma mulher: um pouco de morte. 

O Reconhecimento Infinito, 1963, (Magritte) Ou Pai e Filho

I

Pois também existe aquela história do jovem poeta que teve como guia o velho poeta pelos caminhos do céu – o segredo era interpretar as nuvens mais caprichosas, as que não se assemelham a objetos ou coisas concretas, buscando formas que parecessem com sentimentos. 

A saudade era fina, mas era longa em extensão, e eles demoravam muito tempo para conseguir percorrê-la por completo. Às vezes, uma saudade era tão longa que eles desistiam no meio do caminho e tomavam outro rumo para continuar a atividade de sentir as nuvens e compreender suas peculiaridades.

O ódio não era exatamente branco como as demais nuvens. Existia algo de cinzento nele. Era um tipo de nuvem que se podia perceber à distância e que causava uma impressão particular. Destacava-se entre as demais e era responsável pelas tormentas mais violentas. 

A paixão se assemelhava, curiosamente, ao ódio. Também era responsável por fazer a terra estremecer, mas tinha algo de momentâneo, não se fixava por muito tempo no horizonte, e se dissipava com a mesma facilidade e violência com que havia se formado. Era um tipo de nuvem de um quase-vermelho muito leve, apenas matizado, e lembrava a face de alguém ligeiramente envergonhado, mas que conseguia evitar que a maioria das pessoas percebesse seu rubor. Era quase que apenas a sugestão do vermelho. 

Já a dor era reconhecível por ser de um formato menos uniforme, tinha várias saliências, pontas, recortes: não era sempre da mesma maneira que se apresentava aos olhos e a mutabilidade de suas bordas era sua característica predominante. Não era à toa que podia se disfarçar por outro sentimento, sendo, por vezes, muito difícil de identificá-la: era preciso olhos treinados para não se deixar enganar e tomar essa nuvem por outra. 

Existia uma forma de nuvem que raramente aparecia no horizonte. Delgada e curta, ela também era menos cheia que as demais, de uma brancura que apenas manchava levemente o céu azul. E mesmo os poetas que caminhavam entre as nuvens e tinham o costume de identificá-las, às vezes, podiam passar por essa forma sem reconhecê-la propriamente. Deram o nome de remorso para ela e começaram a perceber que muitas vezes ela se formava após a dissipação de uma nuvem de paixão ou de ódio. 

Mas, a mais difícil nuvem de se identificar era aquela que continha o amor. Ela podia ter qualquer formato. Podia se apresentar de qualquer modo e se formava e se dissipava sem obedecer a muitas regras. E o mais curioso é que, ao contrário do que pensam os não-poetas, esse tipo de nuvem aparecia com muita frequência.

A respeito dessa nuvem, os dois poetas discordavam sobre a melhor maneira de identificá-la.

O velho poeta argumentava que para distingui-la era preciso sempre deixar o tempo passar. Ela não se estruturava apenas no espaço, era uma nuvem de temporalidade mais vagarosa e se relacionava diretamente com o brilho dos astros. Ela cobriria o sol e sua mais importante característica seria que quando ela terminava de passar por esse astro, ele brilharia de uma maneira completamente diferente: tudo parecia se iluminar, a luz inundava todos os lugares e as coisas podiam ser vistas de um modo mais verdadeiro. O velho poeta acreditava que a nuvem do amor era aquela que tornava possível uma explosão de luminosidade após a sua passagem. 

O jovem poeta, no entanto, achava que conseguia identificar a nuvem do amor através de um outro recurso. Não era exatamente o formato das bordas, a coloração, o preenchimento, a potência de chuva, nem mesmo o brilho do sol depois que ela passava. Nenhuma dessas características tomadas exclusivamente podia apontar para a nuvem do amor. O amor era um pouco de saudade, um pouco de ódio, um pouco de paixão, um pouco de dor e um pouco de remorso. Era uma nuvem contraditória em si mesma. Fina e longa era, ao mesmo tempo, curta e disforme. Cheia e pronta para a tormenta era apenas uma mancha no céu azul. Levemente colorida era extremamente branca. Era responsável pela luminosidade mais ampla e pela sombra mais escura.     

Como isso poderia ser possível, o jovem poeta não sabia obviamente explicar. Talvez a resposta fosse que todos os formatos de nuvens que representam os sentimentos tivessem, no fundo, uma mesma origem. Ou que tivessem uma mesma finalidade. O amor poderia estar no começo ou no fim de todos os sentimentos. O que o jovem poeta tentava defender era que, de qualquer modo, nenhuma das nuvens tinha um real significado se não tivesse no fundo, mesmo que só de passagem, um pouco do amor. Todas as nuvens eram feitas da mesma matéria. Era uma certeza estranha. A de que todos os sentimentos que possam existir nesse mundo eram, na verdade, apenas breves momentos de uma nuvem de amor infinita.  

II

Não estando propriamente mortos, os dois homens se encontram em meio aos sonhos. O cenário é com frequência o mesmo: os céus. E o caminhar é sempre para frente. Vez ou outra, é preciso desviar das nuvens mais carregadas. 

A conversa, no fundo, também é sempre a mesma.

O homem mais velho, o que usa a bengala para auxiliar no andar, quer convencer o mais novo, o que fala sempre gesticulando, que seu lugar natural é ali, no azul do céu e na brancura das nuvens: um infinito plenamente luminoso e verdadeiro. 

O homem mais novo, no entanto, conhece seus próprios abismos. Sabe que estar ali, andando entre nuvens, não é sua condição natural. Reconhece que está sempre a um passo de cair em uma escuridão profunda. Talvez quisesse simplesmente acreditar no homem mais velho, porém, aprendeu a desconfiar prontamente de si mesmo e admite que anda sempre no limite, sempre em uma quase queda. 

E o pior.

Aprendeu, com o passar do tempo, a gostar do abismo. 

III

Como explicar esse universo de significados: a sensibilidade em pintar a conversa mais verdadeira, a adequação em localizar nas nuvens esses homens tão iguais e tão diferentes, a técnica de deslocar os personagens para justamente centralizá-los, a capacidade de fazer das ocasiões do branco algo de carinho, a presença dos chapéus como símbolo do encontro e a musicalidade profunda do azul como manifestação da futura saudade?   

Talvez, seja porque se trata de uma beleza plena que está para além de qualquer temporalidade, que sobreviverá ao depois do depois – de algum modo, foi possível pintar aquilo que os homens mais sensíveis nomeiam de uma forma abstrata, mas que é precisa: sinceridade.  

IV

Na escolha das cores, nos matizes mais suaves, na leveza dos personagens, no senso de proporção.  

O contraste entre o azul do céu e o branco das nuvens: infinidade.

O cinza da condição humana, levemente deslocado do centro da tela: brevidade.

Uma imagem que não é uma representação, apenas sugere algo entre a infinidade e a brevidade: a pintura mais poética de todo surrealismo.

Xícara, Pires e Colher cobertos de Pelo, 1936, (Oppenheim) Ou O suporte radical

I

 

A tensão sexual vem da forma.

Entre o côncavo e o convexo – o longilíneo. Colocá-lo em funcionamento é iniciar o complexo jogo que é próprio da cópula. 

É preciso imaginar a introdução desse objeto-membro dentro daquela abertura peluda. Não conseguimos pensar em outra hipótese possível, outra utilidade para esse objeto masculino e esse buraco feminino. Imaginar o sexo, aqui, é quase tão fácil quanto tomar uma xícara de chá ou café: antes de beber o líquido aguado, introduzimos o talher para mexer o açúcar e tornar doce o que é naturalmente amargo por natureza.

O buraco da estrutura feminina é convidativo; mesmo com aquela quantidade enorme de pelos em seu interior. 

Nunca conhecemos uma mulher que fosse peluda por dentro do próprio sexo. Mas claro que isso não significa muita coisa: existem inúmeras variações de vaginas e não resta dúvida que alguma mulher, em algum lugar, possui pelos por dentro. Talvez, seja o caso de colocar um anúncio nos jornais. Certamente apareceria alguma mulher com uma vagina desse tipo para clamar por algum prêmio. 

De resto, não é preciso, ao que nos parece, ter algum fetiche por utensílios de tomar chá para enxergar a questão sexual inerente à composição. Basta, apenas, nesse caso, pensar em colocar em movimento a estrutura como um todo. 

Entre o côncavo e o convexo penetra o longilíneo. 

 

II

 

Existe algo de estranho em colocar essa obra sobre um suporte qualquer. Temos essa sensação, possivelmente, porque ela, em si, já contém uma espécie de suporte. Pode se dizer, inclusive, que é o suporte mais natural a composição. 

O pires é um utensílio de cozinha que se assemelha a um pequeno prato e que serve muitas vezes de apoio para xícaras. Neste caso, no entanto, tem a função de servir de base para uma xícara e uma colher especiais. 

As esculturas têm suportes dos mais variados tamanhos e formatos. Elas servem para destacar os objetos artísticos, diferenciar o que é arte do que é um mero elemento que compõe nosso campo de visão. O suporte das esculturas não faz parte, geralmente, da própria obra, assim como as molduras de quadros, também não são elementos das próprias pinturas. As molduras são igualmente suportes a indicar o que é obra de arte e o que não faz parte do produto da imaginação artística. 

Esta obra singular, porém, já contém o seu suporte. Trata-se do pires que sustenta os dois outros elementos da composição. É um caso propriamente original porque este pires, ao mesmo tempo em que é o suporte, como não poderia deixar de ser dada a sua função tradicional, também faz parte da própria obra de arte. 

Dispor essa composição sobre um suporte, portanto, seria efetuar uma repetição e, ao mesmo tempo, negar ao pires sua dupla função: suporte e elemento da obra. Seria desrespeitar, profundamente, a astúcia desse arranjo especial, original a sua maneira, e operar uma diminuição de seu caráter propriamente contraditório e artístico. Em suma, seria uma burrice sem tamanho. 

 

III

A estrutura é contraditória.

Composta de pires, xícara e colher, todos objetos de indústria, esses elementos são recobertos por pelos. De algum modo, não passam de produtos artificiais criados pelo homem e, portanto, não têm origem orgânica. 

Os pelos, não obstante, remetem inevitavelmente a alguma espécie de ser vivo, algum animal que os possua em abundância, uma vez que os três objetos da composição são plenamente felpudos.

Ora, para que servem, então, esses elementos?

Não são exatamente objetos úteis para tomar chá – os pelos se acumulariam em nossas bocas –, e, também, não são obviamente animais, não podem empreender movimento e nos divertir. 

Os pelos negam a função de utensílio doméstico. A forma nega um caráter propriamente animalesco. 

Não sendo útil de alguma maneira mais evidente, ou melhor, sendo inútil a seu modo, talvez ainda sobre uma alternativa para essa composição inusitada: pode ser que seja o que os desocupados chamam de arte. 

E para evitar que alguém confunda essa escultura com pires, xícara e colher de verdades ou apelidem a coisa toda com algum nome idiota, como costumamos fazer com os cachorros, seria uma boa ideia garantir que a estrutura seja realmente considerada uma obra de arte. Para isso, basta prendê-la em algum museu, pois, segundo nossas convenções, o que está no museu é indubitavelmente alguma espécie de arte. Não é bem que algo seja arte e, por isso, fique exposto no museu, mas é porque está no museu que se torna arte.

A questão toda gira em torno do fato de que é a profunda inutilidade dessa composição que pode, inversamente, garantir alguma espécie de significado, um sentido de obra para a coisa toda. 

 

IV


Xícara, pires e colher cobertos de pelo são o que são e dispostos em uma galeria hipotética arrumam encrencas por sua aparente simplicidade singular. Mas, existe uma certa forma de desrespeito do bom gosto que cai muito bem a arte de escândalo. É bom que a composição seja exposta para o público, os críticos de ocasião terão que enfrentar o medo de que a arte faz sentido ao se perfazer em arte em si mesma.

A Mulher Escondida, 1929, (Magritte) Ou Do Lado de Dentro de Mim Mesmo

I

 

Dezesseis homens não enxergam a mulher porque ela está escondida.

Quinze homens não enxergam a mulher porque não estão usando gravata borboleta.

Catorze homens não enxergam a mulher porque ela está nua.

Treze homens não enxergam a mulher porque ela cobre um dos seios.

Doze homens não enxergam a mulher porque usam gravatas escuras.

Onze homens não enxergam a mulher porque os cabelos dela são escuros.

Dez homens não enxergam a mulher porque não veem os pelos pubianos dela.

Nove homens não enxergam a mulher porque seu rosto está de perfil.

Oito homens não enxergam a mulher porque ela parece estar encabulada.

Sete homens não enxergam a mulher porque ela está na floresta.

Seis homens não enxergam a mulher porque usam paletó.

Cinco homens não enxergam a mulher porque ela é branca.

Quatro homens não enxergam a mulher porque usam gravatas claras.

Três homens não enxergam a mulher porque usam coletes.

Dois homens não enxergam a mulher porque têm cabelos curtos.

*

 

Um homem não enxerga a mulher porque é homem.

 

II

 

Nenhum homem deixa de enxergar uma mulher porque está de olhos fechados [essa é a única maneira de conseguir ver verdadeiramente uma mulher]. 

 

III

 

Na floresta, uma mulher brinca de esconder. Mas, faz, na verdade, um jogo um pouco estranho: é ela quem se oculta, por certo, mas tenta de todo jeito avistá-lo a procurar por ela.

Ela está absolutamente pronta para ser descoberta por ele. Inclusive, soltou os cabelos e tirou até as roupas para mostrar que está receptiva. 

Mas, há muito que ele deixou de procurar. 

Parada Amorosa, 1917, (Picabia) Ou Do Sexo e outras Engrenagens

I

 

Dentro do pequeno quarto fechado à chave, um daqueles locais apropriados para relações mais íntimas, um homem e uma mulher fazem sexo de uma maneira absolutamente mecânica. O vai e vem da penetração é, nessa imagem, certamente vigoroso, obedece a um ritmo próprio, e tudo aponta para a conclusão de que eles não vão terminar de fazer o que estão efetivamente fazendo muito cedo.

O espectador da figura é certamente um enxerido. Pega, no flagra, o casal ao meio da relação sexual, mas, isso não traz maiores problemas, uma vez que, obviamente, este era o objetivo central da pintura.

Não dá para saber ao certo se o casal referido se ama. Essa questão, para falar a verdade, quase que não se propõe. Trata-se, aqui, de representar mais a ordem do sexo do que a do amor. O que está em jogo é o que poderíamos chamar de mecânica do sexo, ou seja, como ele opera, como entra em funcionamento e, também, como termina. E, nesse caso, apesar de haver uma movimentação evidente, há algo de profundamente repetitivo na imagem.

O homem é viril. Parece, muito bem, que sua ereção durará ainda por certo tempo. Além disso, está, sem dúvida, severamente concentrado. A imagem indica a lógica de um ritmo que ele parece estar a impor na relação. É, por assim dizer, sua forma própria de exercer a dominação.

   Sexo é poder.

A mulher é bonita. Seu rosto é belo e seu corpo jovem está na medida das proporções das mulheres mais elegantes. É um corpo com curvas arriscadas, mas, perfeitamente bem traçadas. Seus glúteos, por exemplo, são de um redondo absoluto, um redondo de corpo esculpido, que leva sempre os homens a parar para olhá-la passar quando a encontram nas esquinas da vida. É, por assim dizer, sua forma própria de exercer a dominação. 

O homem está completamente nu, enquanto a mulher está parcialmente vestida. Nitidamente, ela ainda está de saia verde, e, apesar disso, consegue realizar a relação sexual sem o menor problema.

Existe, obviamente, uma desproporção entre o tamanho do quarto e o do homem e a mulher. O casal, seja oficial, infiel ou mesmo que se trate de uma paixão de ocasião, de alguma maneira está em um momento pleno e, talvez por isso, ocupe visualmente quase que a totalidade da tela. 

Uma curiosidade é que não dá para saber ao certo qual a posição sexual que estão a praticar. A imagem dá a impressão de uma lógica vertical, e, por isso, acabamos por entender que a posição sexual do casal também se dá neste sentido. Mas, devemos confessar que muitas outras alternativas também nos são dadas pela tela e podem ser perfeitamente possíveis. Basta um pouco de imaginação.

II

 

A máquina pode ser entendida como a junção de dois elementos conectados por hastes. De um lado, uma estrutura cinzenta, de outro, uma armação colorida: estas duas estruturas compõem a máquina como um todo. 

Os cilindros verticais da estrutura cinzenta, em sua operação, movimentam para cima e depois para baixo, um vai e vem, uma haste longa e fina. A haste, ao que parece, sobe e desce de acordo com o ritmo com que esses cilindros são acionados. Em sua lógica interna, os cilindros são potentes e quando ativados impulsionam os momentos iniciais do maquinário todo dando o ponto de partida para que as demais peças possam entrar em operação.

A estrutura colorida, por seu turno, tem mais elementos que a cinzenta. Um cone vermelho de ponta cabeça no topo da armação, uma caixa de madeira abaixo do cone invertido, um tubo grosso conectado a um cilindro que está acoplado a um latão verde, um círculo incompleto azul (parcialmente escondido pelo latão verde.), e a haste que liga tudo isso diretamente à estrutura cinzenta. 

  Pela composição da pintura, o movimento da estrutura cinzenta acaba por movimentar a haste que está presa no tubo do segundo elemento da máquina, o elemento colorido. Essa movimentação, na haste cinzenta, ganha um paralelismo no tubo do elemento colorido da máquina. A movimentação da estrutura cinza provoca, necessariamente, a movimentação da armação colorida. E, nesse caso, a impressão é a de que o tubo adentra, penetra, o latão verde. Isso depende da dinâmica da estrutura cinzenta e, uma maior ou menor velocidade na movimentação dos cilindros que a compõem, estabelece, por consequência, uma maior ou menor potência do tubo da estrutura colorida a penetrar no latão verde.

A máquina da imagem, após os momentos iniciais em que ainda estamos a pensar como se dá o seu funcionamento, é composta quase que exclusivamente de ferro, metal e aço. Ela é, certamente, fria como nos encontros fugidios dos amantes de hoje. Além disso, se não produz objetos do consumo tradicionais, por certo que provoca prazer. É o prazer como objeto de consumo. Prazer pelo prazer.

A máquina também parece operar de um modo repetitivo. Como se suas funções não fossem tão complexas e sua movimentação se desse por ciclos breves. 

Além disso, existe uma rosca na estrutura cinzenta que fixa a haste escura e torna possível a sua ligação à armação colorida. Talvez, a supressão desta rosca tornasse possível a separação da máquina em dois elementos distintos. Duas máquinas separadas. Mas, daí, o constructo todo perderia seu sentido mais particular. De alguma forma, apesar de poderem ser separados, os dois elementos se completam à sua maneira e funcionam, mesmo que de modo improvável, sempre juntos quando é o caso de estarem em pequenos quartos fechados à chave. 

Daum Casa com o seu Pedante Autômato “George” em Maio de 1920, John Heartfield está muito Contente com isso (Construção Meta-mech, segundo o Prof. Hausmann), 1920, (Grosz) Ou Amores Sinceros

I

 

Uma mão, talvez menos do que uma mão, um dedo, toca de maneira suave o seio direito de uma mulher. 

Pode ser que esse toque cause algum prazer. 

De fato, a mulher está claramente ruborizada ao olhar para o autômato ao seu lado. Além disso, sua boca está semiaberta e dá a impressão de que está ligeiramente encabulada, abrindo um sorriso forçado para o autômato – ela, de maneira nítida, não quer que ele perceba o que está acontecendo. Tudo leva a crer, aliás, que o robô não percebe o toque e também não é quem o realiza. O ângulo entre a mulher e ele não permite que ele veja a carícia. Além disso, a mão é por demais orgânica e está fora do alcance do autômato: é inviável sustentar que seja sua. 

Essa mulher é, sem dúvida, a nova esposa do robô. Ela se importa com o que ele pensa. Tanto que fica envergonhada com o toque. Mas isso não é suficiente para fazer com que ela afaste a mão que a acaricia. Pelo contrário, ela parece mover o corpo em uma posição em que a mão possa continuar o afago e, ao mesmo tempo, tornar mais difícil que o autômato veja a situação. 

Pode ser que o fato de estar vestindo apenas uma anágua e chapéu sinalize para uma mulher mais solta. O chapéu que ela usa é um daqueles apetrechos próprios para sair à rua, enquanto a anágua, que deixa seus pelos pubianos à mostra, aponta para uma situação mais íntima, em ambiente privado. Há algo de contraditório em estar vestindo um chapéu de sair e uma anágua de ficar, mas talvez essa seja a melhor maneira de caracterizar esta mulher. Alguém que pertence e transita com facilidade entre a rua e o interior da casa.

Podemos, também, tentar entendê-la a partir de outra ótica. Ela é daquele tipo de mulher que, sem ser propriamente gorda, possui carne em abundância. O tipo de mulher que parece efetivamente ser mulher. Porém, talvez o fator que mais aponte para a sua feminilidade não seja, curiosamente, suas curvas e nem suas carnes nos lugares corretos, mas sim, aquele rubor no rosto de quem, de algum modo, está traindo o marido. A feminilidade, nesse sentido, é obviamente dupla: (1) estar traindo o marido; (2) estar ruborizada por isso.    

 

II

 

O autômato é quase que exclusivamente uma complexa máquina de cálculos. Números e mais números aparecem em sua estrutura mecanizada. Seu corpo é feito de engrenagens e de peças de ferro. Não dá para saber ao certo, para falar a verdade, como as engrenagens operam, ou seja, como podem fazê-lo funcionar. No entanto, uma manivela acoplada a alguma espécie de antiga calculadora mecânica parece ser o modo de acionar toda a sua estrutura. 

Mãos estão acima de sua cabeça e tocam-lhe a testa. Tudo o que conseguem produzir, não obstante, é uma sequência de números que, coladas no rosto do robô, escondem o seu nariz. Essa máquina que copia por meio de mecanismos e engrenagens o homem de carne e osso, o homem orgânico, por assim dizer, está vestida, como podemos perceber, de maneira sofisticada, como se estivesse pronto para uma cerimônia. Veste uma casaca cinza, nitidamente bem cortada, uma camisa branca com o colarinho alto e uma gravata borboleta negra. 

Este autômato sempre se veste bem e pode se dizer que é requisitado pelas mulheres. 

Se por um lado, sua esposa está entretida com mãos de outro homem, outra mulher aparece escondida na imagem que compõe as relações amorosas deste casal. Podemos ver apenas seu perfil em um recorte pequeno, localizado na parte superior da imagem, na extremidade à esquerda. Seu rosto ocupa a totalidade de uma janela diminuta, feita para passar quase que despercebida. Não sabemos quase nada sobre essa mulher. Mas, não há dúvida de que se trata da amante do autômato. O curioso, nesse caso, é que o robô nunca, em nenhuma situação, aparentará qualquer espécie de vergonha por ter uma amante. A masculinidade, nesse sentido, é obviamente dupla: (1) estar traindo a mulher; (2) acreditar profundamente, de maneira absolutamente sincera, que não está fazendo nada demais.  

A Raça Branca, 1937, (Magritte) Ou O Beijo de Mil Anos

I

 

Talvez o que a escultura indique não seja mais do que a reunião dos sentidos. É claro que, para isso, é preciso entender cada parte da composição como uma representação simbólica, uma metáfora, de nossos modos de captar o real. A visão, a audição, o paladar e o olfato. Curiosamente, o tato é sequestrado da escultura, justamente o sentido mais propício para contemplá-la. Isso é, se essa peça for uma daquelas que podemos efetivamente tocar sem receber reproches dos vigias de galeria. 

Não é o caso de pensarmos que existe uma hierarquia entre os sentidos. Como se o fato de estarem um em cima do outro indicasse que existiria alguma propensão a uma gradação baseada na lógica da importância. Os dois narizes estão embaixo da boca, a boca abaixo da orelha e o olho acima de todos os outros elementos. Se os narizes estão por baixo de toda a montagem, o que os diminuiria aparentemente em valor, eles vêm em dupla (o que não ocorre com os demais sentidos) e, além do mais, sustentam como alicerces os três outros elementos. A boca, se por um lado está ao meio entre os sentidos, está, ao mesmo tempo, no centro da escultura e se observarmos uma fotografia da obra, seria a primeira coisa que perceberíamos quando nos dedicássemos a olhar para a coisa toda. A orelha, intermedia a boca e o olho, e está disposta de um modo que nos leva a pensar que é maior que os outros elementos da escultura. E o olho, apesar de se situar acima de todos os outros sentidos, não causa maior impressão e é o menor de todos os componentes da escultura. 

A boca, a orelha e o olho se equilibram sem dificuldade nos dois narizes que servem como que pernas para a estrutura como um todo. Estão plenamente ligados, soldados, e não mostram sinais de que vão sofrer alguma queda. 

Mas, pode ser que a melhor maneira de entender essa escultura seja não separar os elementos que foram colocados propositalmente em uma disposição precisa. Se os sentidos nos fazem ser diferentes dos objetos inanimados e dos animais, isso ocorre porque não apenas apreendemos o mundo por meio deles – nós damos significados para o mundo quando os utilizamos. A escultura, tomada como um todo, lembra bem uma representação humana, com suas pernas, cabeça, tronco. E, ao mesmo tempo, remete às características dos sentidos que nos singularizam. 

Mas, se assim for, certamente se trata de uma representação feminina.

A boca, logo acima das pernas, nos remete a outros orifícios. Aqueles lábios não nos enganam e, carnudos, são a representação de outra representação do que seria uma mulher. Uma metáfora de uma sinédoque.

O conjunto é especialmente harmônico e é feito, aparentemente, de cobre. E o tato, que não é aparentemente contemplado na escultura, muda de lado e se transforma na vontade mais importante do espectador da obra. Se é a representação de uma mulher, o que pode ser ou não ser, dependendo da interpretação, sentimos subitamente a vontade de tocar a coisa toda, se esse for o caso, só para tirar a dúvida.   

 

II

 

A raça branca pensa que só ela possui sentidos. 

Ela não olha, propriamente, outras raças: analisa. Uma visão que se proclama superior, pois é inclusive científica. A ciência de olhar os outros tem cor. 

Sua audição até aceita outros ritmos, desde que possa se apropriar deles e transformar em algo seu – limpo, civilizado, melódico e harmoniosamente branco. O som, que era repleto de verdade, se altera e vira, de repente, música. 

A dominação não tem, verdadeiramente, espelho. O lado de lá, nunca é o lado de cá. O preconceito, quando se refere à raça, corre sempre em via de mão única. A raça branca até finge ser possível um preconceito às avessas. Mas, no fundo, sabe que branco é branco.

Talvez a raça branca já nasça perfumada quando vem ao mundo.

Alguns brancos dizem conseguir identificar outras raças pelo cheiro. Sustentam que não é preciso muito esforço para desenvolver esta técnica e que, na verdade, ela tem algo a ver com a higiene. Certamente que os odores dos corpos dos homens, dizem os brancos, não são iguais. Dependem da cor. O bom branco finge não se importar tanto com isso. Com o cheiro dos outros. Tolerante, não reclama. Mas, por meio de um raciocínio que não pode evitar, um pensamento que lhe é próprio, preferiria que o mundo fosse mais perfumado.   

Civilizada, a raça branca simula partilhar dos mesmos valores que todos. Talvez saiba que os valores de todos, na verdade, não passam de seus próprios valores e que, se tudo continuar como está, ela não tem muito a se preocupar. 

O branco é um curioso. 

Ouve falar que outras raças têm temperos diferentes. Está pronto para experimentar especiarias e trata a culinária de outras raças como alguma coisa inusitada. Seu paladar pode até se educar e permitir novas possibilidades, mas, de qualquer modo, quando o caso é o de misturar culturas gastronômicas, é a raça branca que domina e determina a lógica do gosto. 

A raça branca é dada a dar piscadelas. 

Tenta convencer, por meio desse truque, que tudo corre maravilhosamente bem. Que todos os homens compartilham dos mesmos princípios e que sentem o mundo da mesma forma. Sugere, nessa artimanha, que o branco está do lado de outras raças. Que a própria ideia de raça, talvez faça pouco sentido. As piscadelas da raça branca são sinais que pretendem, de propósito, criar certa sensação de igualdade quando, na verdade, essa raça sabe que domina completamente a lógica dos sentidos. 

Nesses momentos, ela pensa, sem titubear, que seus olhos cínicos, via piscadelas, podem fingir não serem os do colonizador. 

 

III

 

A raça branca pensa que só ela possui sentidos.

A raça branca acredita que enxerga mais longe.

A raça branca diz compor música, não sonoridade. 

A raça branca somente enxerga a si mesma no espelho.

A raça branca se incomoda com o cheiro de outras raças. 

A raça branca adere aos valores essenciais, criados por ela mesma.

A raça branca inventa o gosto, estabelece o paladar.

A raça branca pisca cinicamente os olhos, finge que não existe dominação.

 

IV

 

A raça branca não beija nunca outras raças, engole.

Por que não espirrar, Rose Sélavy?, 1921, (Duchamp) Ou O espelho do enigma

I

 

A gaiola branca de ferro aprisiona 152 cubos de mármore brancos que lembram cubos de açúcar. Cada cubo ostenta uma pequena inscrição que dá notícia de sua origem: made in France. Houve um tempo em que isso poderia significar que eles eram potencialmente perigosos. Hoje, talvez, isso não deva dizer mais nada. Os dois poleiros de madeira lembram que se trata, afinal de contas, de uma gaiola, mas não sendo úteis para nada que está presente na composição – na estrutura nada se liga a esses poleiros –, eles acabam por remeter ao que não está presente: sente-se, obviamente, a ausência dos pássaros. 

Dentro da gaiola, um osso de choco também nos remete ao sequestro dos pássaros nesse readymade. O osso de choco é uma espécie de suplemento alimentar altamente necessário para a saúde das aves domésticas. Dizem que ele é rico em cálcio e consiste em uma lâmina comprida que provêm de moluscos marinhos, chocos ou lulas. 

Um termômetro de mercúrio completa a gaiola. Apesar de ser um utensílio para medir a temperatura, esse instrumento de medição não está, nesse caso, marcando o registro da temperatura da gaiola. Defender, então, se está frio ou calor ali dentro é apenas uma questão de argumentação. Sua disposição, acima dos cubos de mármore e dos poleiros, o coloca em evidência, dando a sensação de que é um componente insubstituível e absolutamente relevante para a compreensão da obra toda, mas, na prática, não aponta para entendimentos maiores.

A obra em questão, essa aglutinação feita de materiais prontos dispostos de uma forma específica, pode muito bem ser compreendida a partir de uma perspectiva simbólica. Talvez, inclusive, essa seja a única alternativa para uma interpretação mais coerente. 

Os cubos de mármore são muitos, exagerados, mas parecem ter sido colocados em um número exato e arbitrário: 152. Eles sugerem o peso na obra, sem dúvida.

Feitos de mármore, esses cubos lembram torrões de açúcar. Daquele tipo que quando adicionamos ao café, no líquido quente, demoram um pouco a derreter: tem uma saborosa temporalidade própria, mas, a bem da verdade, são inertes. Talvez, então, seu formato e sua cor branca, esses elementos que são essenciais aos torrões de açúcar, mas que nesse caso apenas falsificam o doce, indiquem mais para uma promessa de doçura do que para uma doçura propriamente dita. 

O termômetro pode apontar para o calor ou para o frio. Como a gaiola é preenchida por cubos de mármore, parece ser a falta de calor o que está em jogo. Essa interpretação vai de encontro com a ausência de pássaros evidenciada pelos poleiros inúteis e pela própria estrutura da gaiola em si, que não os contém. 

Os poleiros, aliás, em uma observação mais detida, não estão dispostos ao centro da gaiola. Estão por demais colados a sua superfície superior, rentes a trama de ferro de cima, e também muito deslocados: um deles está muito à esquerda, ocupando o ângulo superior correspondente e o outro muito à direita, ocupando o outro ângulo superior. De qualquer modo, nessa disposição específica, eles não servem para proporcionar aos pássaros qualquer sensação de possibilidade de movimento. As gaiolas, em geral, têm poleiros. O curioso dessa gaiola é que os poleiros não podem cumprir a sua função dada a disposição em que se encontram. O que nos leva a indagar, inevitavelmente, sobre uma utilidade real para qualquer poleiro – todos são a negação do movimento para os pássaros. Mesmo o osso de choco se torna altamente inútil para a composição, uma vez que não pode servir a possíveis  pássaros que estivessem engaiolados. 

A gaiola, então, é fria. É aparentemente doce, mas, no fundo é feita de mármore, sem sabor. Parece ser leve, é importante perceber que está suspensa na composição, mas tem um peso considerável (152 cubos de mármore). Tem poleiros que são, em verdade, inúteis (como todos os poleiros, aliás) e um osso de choco que serve apenas para fazer a mera manutenção da vida de pássaros domésticos em potencial, mas pássaros não existem. 

Essa gaiola, como bem se pode perceber, é no fundo o avesso da liberdade. Todos os elementos que a compõem podem aparentar algo de calor, doce, livre, bem cuidado, mas ela não passa de um lugar que é o contrário disso, terrível para os pássaros – que simbolizam a liberdade de voar: a gaiola é fria, sem sabor, aprisionante e mal cuidada. 

Os elementos que compõem a gaiola, assim, inversamente, nos remetem a liberdade de pássaros que não aparecem de maneira evidente na obra. O que se vê sem muita dificuldade, na verdade, aponta para o que não se vê. Uma forma de olhar que se perfaz somente por meio da ausência.  

 

II

 

Refletida em um espelho disposto embaixo da gaiola, que está levemente suspensa, uma inscrição chama a atenção dos observadores, até porque, inicialmente, não se compreende o que está escrito. A inscrição, provavelmente devido ao efeito próprio da natureza dos espelhos, está invertida, o que dificulta obviamente a sua compreensão. Claro que isso significa que a gravação está escrita de modo habitual e corrente embaixo da gaiola, e o efeito do espelho, apesar de tentar reproduzir o real, é incapaz de satisfazer completamente a ideia de reprodutibilidade. O que significa dizer que por mais que a estrutura toda possa ser reproduzida indefinidamente, como em um espelho que tenta refletir fielmente nossas características, há algo de exclusivo na primeira vez que a obra foi pensada.

É bom salientar que as letras que compõem a inscrição na gaiola suspensa, aquelas que serão invertidas no espelho, podem parecer, inicialmente não fazer muito sentido. Mesmo quando as lemos como uma frase, elas parecem oferecer pouco auxílio na interpretação da obra em si. Seria uma frase aparentemente aleatória, se não fosse o fato de que corresponde exatamente ao título que o artista deu para a obra. Claro que os títulos de obras de arte podem ser mais ou menos evidentes ao tentar representar por meio de palavras uma pintura, uma escultura, uma fotografia ou um readymade. No entanto, de qualquer modo, são boas vias de acesso para começar a tentar compreender a coisa toda. 

Why Not Sneeze Rose Sélavy? (Porque Não Espirrar Rose Sélavy?)

O título, irreverente, parece apontar menos para uma explicação da obra como um todo e mais para a introdução de um elemento adicional à   lógica da composição. Afinal, está grafado na gaiola e, ao mesmo tempo, é o que se pode ler de maneira invertida no espelho que está disposto logo abaixo da estrutura.

A frase é, na verdade, uma simples questão. Evoca uma mulher, Rose Sélavy, e pergunta sobre porque não se deve espirrar. Este caráter interrogativo poderia parecer, à primeira vista, que o artista está realmente a se questionar sobre a atividade de espirrar, sobre a oportunidade ou não de empreender essa ação banal. 

Ocorre, no entanto, que o tom da pergunta, separada de qualquer repertório de outras frases, se por um lado aponta para um caráter um tanto quanto curioso da natureza do espirro, por outro, se situa entre o chiste e a rebeldia.

Há algo de rebelde na frase, como se ela indicasse uma desobediência a algum código de conduta, como se ela problematizasse uma questão que não se coloca, habitualmente, sob regime de dúvida. Em outras palavras, a frase contém em si alguma espécie de afronta a alguma instituição superior e respondê-la com sim/não pode significar o primeiro passo em direção a um universo menos regrado.

É claro que se existir uma regra a nos impedir de poder espirrar, trata-se de uma normatividade profundamente rígida. O espirro parece ser coisa propriamente humana e é absolutamente corriqueiro. Existe, assim, algo de cômico, uma certa brincadeira, em pensar em uma proibição do espirro. Há qualquer coisa de ridículo nisso, por óbvio. Cedo ou tarde, todos os homens e mulheres vão espirrar. Portanto, a pergunta feita à Rose Sélavy é um tanto engraçada: é impossível que seja totalmente séria, e pode soar, aparentemente, como uma forma de pilhéria. 

Mas, o curioso, mesmo, é que o espirro contém, também, um teor altamente anárquico. Em geral, não podemos planejá-lo de antemão e estabelecer sua intensidade. Não se pode, efetivamente, espirrar de propósito. Existe, portanto, sempre alguma coisa de surpresa no espirro, algo de inesperado. E perguntar sobre a sua oportunidade certamente é um despropósito. 

De modo que fica provado que a pergunta em análise é prontamente inútil. Ou seja, Por que não espirrar, Rose Sélavy?, é inútil. Completamente inútil. Como gaiolas brancas recheadas de cubos de mármore que lembram torrões de açúcar brancos e que contém também poleiros inviáveis, osso de choco e termômetro. 

 

III

 

Controlar um espirro é tão despropositado quanto enjaular um pássaro. Pelo menos, é isso que os torrões de mármore parecem determinar. Claro que a temperatura, a ser medida pelo termômetro de mercúrio, influencia a quantidade de pássaros na gaiola. E, como não podemos ver nenhum pássaro, isso bem pode significar que Rose Sélavy não vai espirrar, mesmo que esteja com toda a vontade do mundo de assim o fazer. A obra de arte em questão faz um acordo entre Rose e os pássaros. Ela não espirra e o autor não aprisiona as aves. Os pássaros não têm toda a vontade do mundo de serem aprisionados. É preciso ser muito idiota, espirrar muito, para pensar que ossos de choco trocariam sua prisão pela liberdade de poder voar como pássaros.  

 

IV

 

Refletir em um espelho a frase Por que não espirrar, Rose Sélavy? é um truque e tanto. 

O espelho reflete a própria obra em seu mais determinante detalhe, seu título, mas o faz apesar de não refletir a própria obra. Não se enxerga nada da composição efetiva, a gaiola e seus componentes, a partir desse espelho. 

É um espelho curioso, no mínimo. Reflete a obra, mas não a representa de maneira alguma. 

Trata-se, é claro, então, de um espelho que não é espelho. É certo que não cumpre essa função.  

E o pior: vai criando caso, causando estupefação, agredindo o observador, por fazer isso às avessas.

Aniversário, 1942 (Tanning) Ou O labirinto do reflexo

I

 

À esquerda: uma mulher e um espelho.

À direita: um animal alado e portas sucessivas.

Pode parecer que há simplicidade nisso, mas a técnica da composição, seus segredos internos, pode perfeitamente nos enganar.

Nitidamente cindida em dois hemisférios, esquerda e direita, a imagem se separa de um modo que quase podemos enxergar uma linha a dividir ao meio a composição.

Essa separação pode operar na lógica da superposição, como se a imagem pudesse dobrar-se sobre si mesma. Nesse caso, seria preciso vincar a linha que divide a composição e dobrar as duas metades do quadro, esquerda e direita, uma sobre a outra. Mulher/animal alado. Espelho/portas sucessivas.

Talvez nesse caso, um primeiro segredo da composição se torne mais evidente. Ao menos, um pouco mais evidente. 

Nada melhor do que um espelho para refletir as incontáveis portas sucessivas. E, também, nada melhor que um animal alado para representar uma mulher que quer se desprender de um ambiente aprisionador.  

O mistério desse jogo analógico, o modo próprio como a imagem funciona, a partir daí, pode começar a se desvelar: se trata obviamente de uma imagem labiríntica, e a mulher quer fugir dali.

 

II

 

A porta que a mulher abre nos dá a visão de um corredor infinito composto de inúmeras portas. E é justamente essa porta entreaberta, localizada no lado direito da imagem, que dá a sensação de profundidade à composição. Pode ser que cada porta aponte para um caminho, uma possibilidade, uma alternativa diferente para que rumo tomar. O problema é que tudo nos indica que qualquer das portas também abrirá para corredores infinitos compostos por inúmeras portas. 

Toda tomada de decisão, nesse caso, a escolha de entrar ou sair por qualquer dos acessos, apenas nos movimenta em um labirinto aparentemente infinito de corredores e portas possíveis.

  Existem dois tipos de labirinto. O labirinto que segue um único caminho e o que tem múltiplas direções. É possível dizer que o labirinto que tem uma única saída só pode ter uma única entrada. Caso contrário, a reversibilidade entre entrada e saída seria plenamente inviável. É um tipo de construção arquitetônica que leva a uma única resposta ao seu desafio. O labirinto de múltiplas direções, por outro lado, dá alternativas para a sua solução. Não há, nesse caso, uma resposta correta para seu enigma porque, como tem entradas e saídas diversas, é possível resolver o problema de diversos modos.

Um labirinto não é apenas uma figura arquitetônica. É, antes de tudo, uma imagem mental. 

As portas dentro de portas da imagem, portas que vão ao infinito, compõem um labirinto inusitado. A primeira impressão seria a de que não haveria solução para resolvê-lo, afinal, ele se estende de um modo ilimitado. Porém, também pode-se pensar a coisa toda de outro modo nesse caso, de uma forma um pouco curiosa: qualquer das portas que se abrir será a solução do labirinto. 

 

III

 

A criatura é estranha, apesar de nos parecer vagamente familiar. Tem quatro patas e asas para empreender voo. Seu rabo é longo e o corpo não é coberto por penas, mas sim por pelos. O bicho tem o porte de um cachorro mediano. Pode ser que se trate de um animal de estimação, de vida doméstica. Inclusive há quem suspeite de que é efetivamente uma possibilidade de cão, um daqueles animais exclusivos da espécie que só nascem a cada mil anos e que quando surgem, na sua improbabilidade, nos provocam as mais intensas dúvidas sobre a sua origem e significado. 

De qualquer modo, apesar de possuir asas, nada prova que a criatura possa efetivamente voar, o que é certo, porém, é que ela não tem precedentes nos catálogos de ornitologia. 

 

IV

 

Alguma coisa intriga na aparente leveza da imagem da mulher. 

Ela veste uma saia longa com uma espécie de guirlanda composta de raízes de árvore e uma jaqueta de cetim de mangas bufantes violeta. Está descalça e seus seios estão nus. Seus cabelos, de um castanho claro, são encaracolados e combinam, perfeitamente, com as vestimentas.  

Apesar de vestir a guirlanda de raízes de árvore, algo que poderia apontar para a sua fixação ao solo, sua imagem remete também a hipótese de voo, algo de menos pesado. A quantidade de ondas na jaqueta de cetim e na saia, na disposição dos cabelos e na rebeldia das raízes, nos remetem a flutuações maiores, se bem que ela está imóvel, como a posar para uma foto, apesar de seus pés quererem fugir ao chão. 

 

V

 

O espelho parece ser inútil na composição. Ele nada reflete diretamente. As portas, os corredores, o quarto, as costas da mulher, tudo deve estar lá, mas isso é mais uma hipótese lógica que uma possibilidade plenamente verificável. Porém, sua função é fundamental. Existe algo de espelho em todo labirinto, pois os corredores, as portas, os quartos, tudo se repete na lógica dessas estruturas mágicas de aprisionamento. 

Pode ser que exista algo de labirinto em todo espelho também. Delimitada a imagem no recorte de sua moldura, ela fica presa e, por alguns momentos, quando olhamos os espelhos, dão a impressão de que não se pode fugir dali: que o reflexo ficará eternizado em uma imagem captada no momento dos instantes. 

Certamente, os espelhos, em geral, não capturam as imagens para sempre, sua lógica é a do momento, da eminência própria ao tempo.

Esse espelho, no entanto, é traiçoeiro. Tudo indica que o labirinto que ele reflete é infindável, com portas, corredores e quartos que escapam ao normal da temporalidade. E que ficam presos ali, na moldura de um infinito de possibilidades de entradas e saídas. 

O Crítico de Artes, 1919/20 (Hausmann) Ou Uma questão de Nariz

O crítico de arte tem a boca cheia de dentes. 

Está, por função, sempre pronto para morder, mastigar e triturar a obra dos outros. 

Porém, já não fala quase nada que preste de verdade. Sua boca está coberta por um papel que o deixa na maioria das vezes calado e, como ele não se arrisca a falar sobre nada novo, esse papel parece estar grudado meio que definitivamente. De qualquer modo, o papel está plenamente incorporado a seu modo de ser e a sua profissão. 

É verdade que, vez ou outra, ele faz uma crítica mais contundente. Pensa que quando escreve o mundo inteiro deve parar para lê-lo, que suas opiniões podem realmente fazer alguma diferença. Talvez por isso a sua língua, às vezes, se projeta para fora da boca, furando o papel, e dá ao crítico certo ar zombeteiro. Este truque pode até mesmo enganar os outros. Certamente que se o crítico de arte se dispôs a escrever sobre alguma obra, ele deve ter algo a dizer.

Seus olhos, no entanto, denunciam as suas limitações. Há muito que estão cobertos por papéis também. 

 Talvez isso signifique que ele não pode enxergar mais longe, que está cego para a verdadeira arte. Mas, o crítico de arte disfarça muito bem. Ele desenhou, por cima dos papéis que o impedem de ver corretamente qualquer coisa, olhos sinceros e prudentes. 

A impressão que seu semblante passa é realmente interessante. Ele adicionou aos dentes desenhados na boca coberta, na língua ferina, nos olhos sinceros de papel, no cabelo curto e na barba absolutamente bem feita, sem nenhum resquício de pelos, um nariz de homem confiante. 

O nariz é um elemento essencial para o mundo da arte. Ele tem que ser assertivo, empinado, certeiro, meio que petulante nas horas certas: um nariz abusado. Um nariz que os homens de talento mais que possuir por alguma espécie de benção de nascimento vão construindo e inventado ao longo do tempo. O verdadeiro crítico de arte é sempre um homem que inventou o seu próprio nariz. Mesmo que para isso, tenha feito uso de fotomontagem. 

O crítico de arte maneja um lápis desproporcional como se fosse uma espada. Acredita, profundamente, que sua escrita pode analisar e descrever por completo a obra de um artista qualquer. Crê, aliás, que compreende perfeitamente todas as formas de manifestação artística e que seu nariz de homem de talento pode garantir respeitabilidade. O faro para a verdadeira arte nunca lhe foge. Assim, em breves notas de jornal, pensa poder orientar os homens menos avisados para os caminhos e descaminhos da arte.

Mas, seu terno bem cortado, exigência da última tendência da moda, contrasta com uma posição menos civilizada, menos coerente e, sem dúvida, muito invejosa. 

É claro que não se trata do pensamento imbecil de que a crítica de arte é inferior à arte propriamente dita. O crítico de arte prontamente e com razão desmontaria esse discurso com a maior facilidade.  

Porém, às vezes, uma postura mais irreverente o toma de assalto e ele pensa ter mais brilhantismo do que efetivamente possui. Nesses momentos, é claro que as notas bancárias dobradas em seu colarinho, um pouco escondidas pelo seu aspecto confiável, fazem toda a diferença. E aí o crítico de arte pode escancarar aquela boca cheia de dentes, furar o papel que o deixava calado com uma língua insolente.  

Então, felizmente para nós, o crítico de arte tem o amor e o ódio afiados na ponta do lápis. 

Isto não é uma Maçã, 1964 (Magritte) Ou Isto não é uma Maçã

I

 

Os traços desenham contornos que delineiam uma forma curvilínea, ao centro do quadro, que preenche quase toda a tela. A haste é delgada e se liga a outra parte que compõe a estrutura em um ponto específico, o local mais delicado da junção. Há algo de bojudo na figura. Certamente, a geometria própria do elemento, seu formato, aponta para sua capacidade de conter alguma substância. Ele é rígido, para falar a verdade e, não obstante estar disposto de uma maneira surpreendentemente leve, deve ter obviamente peso. O elemento flutua no ar na lógica da composição, mas pode ser carregado pela haste. A estrutura está completa, a seu modo, e pode-se dizer, inclusive, que é bonita. Também parece ser útil. A forma é, sem dúvida, atrativa e o seu conteúdo pode vir a ser prazeroso, especialmente para paladares mais apurados. 

 

II

 

Então, tudo que falta a esse cachimbo é colocar fogo no fumo. Mas, de maneira absolutamente curiosa, já podemos, mesmo antes de acendê-lo sentir o cheiro de fumaça. 

 

III


Como é possível que a fumaça do cachimbo, que voltei e nos prega peças ao mudar caprichosamente de forma, uma fumaça espessa, possa ser sentida antes de acendermos o cachimbo é um daqueles mistérios que só uma maçã como a da imagem pode responder. É preciso não se enganar quanto a isso. Ela está perfeitamente desenhada na tela: na parte superior do quadro, mais à direita do observador, depois de uma sequência de pequenas imagens, em francês – pomme.

O Rei Jogando com a Rainha, 1944 (Ernst) Ou A Consciência do Rei de Bronze

 

I

 

Esta é uma obra impossível.

 

II

 

Esta é uma obra realmente impossível.

 

III

 

Esta é uma obra verdadeiramente impossível.

 

IV

 

Esta é uma obra que não pode e não deve absolutamente ser possível.

 

V

 

A escultura feita de bronze é singular. Em um primeiro momento, a impressão que se tem e a de que seu valor está em uma análise simbólica dos elementos que a compõe. O rei, com chifres que lembram antigas mitologias, se apresenta, ao primeiro olhar, como o jogador de uma disputa de xadrez. Algumas peças desse jogo de tabuleiro se fazem perceber. Podemos notar, nitidamente, três peões, um cavalo, um bispo, uma torre e a rainha. 

A mão direita do rei é capturada pelo instante. As esculturas, em geral, quase sempre são incapazes de apontar para as contradições do movimento – na sua solidez e dimensão espacial. Essa obra, no entanto, aparentemente pode apontar para duas temporalidades diferentes: o rei está a movimentar a rainha, vai começar a dar o seu lance, ou, o rei acaba de mover a rainha e está a retirar a mão que empreendeu a jogada.  

É a mão esquerda do rei, no entanto, o elemento que provoca nos observadores uma sensação de estar diante de um mistério. Ela está disposta atrás do rei e do tabuleiro. A impressão que se tem é que ele está a ocultar alguma coisa: a mão está cerrada e propositalmente atrás do corpo. Há quem sugira que o rei segura uma peça de xadrez apenas e que a mão esquerda não devia incomodar tanto as pessoas que, inevitavelmente, quando se trata de observar essa escultura, chegam com os olhos bem perto da mão, na ânsia de encontrar uma resposta para esse enigma. 

O que o rei está a fazer com a rainha, começando a movê-la, ou, terminando de dar um lance, em verdade, apesar de ser o problema inicial que os observadores reparam, encobre a busca por outros significados para essa obra, cuja potencialidade chega a ser inimaginável. Nesse caso, é preciso levar às últimas consequências o modo como o artista dispôs os elementos que constituem o referido trabalho, mesmo que isso contrarie nossas certezas mais profundas. 

De todo modo, nesse curioso jogo de xadrez, parece ser necessário estar pronto para sacrificar quase todas as peças, inclusive a rainha (esquecê-las por completo), para tornar possível a vitória de um rei solitário e improvável. Deixar de pensar sobre as peças do potencial jogo é a primeira estratégia para entender um lance de gênio em uma partida sem precedentes na história da arte. Mas, nesse caso, deve-se fazer um compromisso com a imaginação artística e negar a ditadura enfadonha do real. 

É preciso, aqui, levar esse rei a sério. 

Pois, em verdade, é exatamente disso que se trata (como em qualquer jogo de xadrez): a vida do rei.

 

VI

 

Na lógica interna da obra, dois níveis de representação: dois níveis de significação.

Em um primeiro momento, olhando a escultura como um todo, o rei é o jogador de uma disputa de xadrez. Aparece da cintura para cima e, em sua estatura e posição – perpendicular ao tabuleiro – é a figura que pode movimentar as peças, é o sujeito da realidade externa ao jogo. O tabuleiro, neste caso, para ele, se mostra como o objeto que está a requerer sua atenção. De fato, neste nível de representação, o rei é o único personagem efetivo da escultura que seria composta de dois elementos essenciais: o jogador e o tabuleiro. 

A obra é a representação de um rei a jogar xadrez. 

Porém, o mesmo rei, por sua projeção da cintura para cima a partir do tabuleiro, pode muito bem ser entendido como uma das peças do próprio jogo. Neste caso, é claro, também é o elemento mais importante da obra, na medida em que, pelas regras do jogo de xadrez, é a sua captura – xeque-mate – que acaba com a disputa e estabelece o vencedor. Porém, se esse for o caso, ele é mais uma das peças que podemos enxergar na base-suporte, pois é certo que podemos distinguir, perfeitamente, três peões, um cavalo, um bispo, uma torre e a rainha. Se ao olharmos para a escultura acabemos por entender que se trata de representação exclusiva do tabuleiro e suas peças, então, o rei já não é o personagem único. E, apesar de sua importância na disputa em potencial, evidente pelas regras internas do jogo, toda a obra se referiria à realidade de uma montagem de um momento de uma partida de xadrez. 

A obra é a representação apenas de um tabuleiro de xadrez. 

Este rei, portanto, na mesma obra, consegue a façanha impossível de ser sujeito do jogo e objeto do jogo ao mesmo tempo, segundo a lógica inusitada com que a escultura foi pensada. Uma obra absolutamente improvável em que o personagem-sujeito é objeto de si mesmo na estrutura, colocando em xeque inadvertidamente a própria racionalidade que se propõe a partir da separação sujeito/objeto, que nesse caso não faz o menor sentido. Uma escultura absolutamente única, singular, que não deveria ser possível, realizável, e que por ser impensável, foi plenamente possível de ser moldada. 

 

VII

 

Uma obra traiçoeira. 

Quando pensamos que o rei é o jogador, ele se mostra a peça de xadrez do próprio jogo. Quando pensamos que ele é uma peça de xadrez, ele é o próprio jogador que movimenta as peças escuras. 

Mas, o curioso de verdade é pensar que o próprio rei-jogador é que movimenta a si mesmo no tabuleiro. De alguma forma absolutamente desconcertante, trata-se da primeira escultura na história que contém uma característica impensável: é uma peça que tem consciência. Afinal, pode mover e se propor a si mesma em jogo. É um rei que ao mesmo tempo em que calcula a sua própria ação, movimentação, para ganhar um jogo absolutamente cerebral, movimenta-se pelo tabuleiro, determinando sua própria posição. Trata-se de um rei a jogar consigo mesmo, raciocinando, talvez, sobre qual seria a melhor jogada para ganhar a disputa, como ele deve proceder e se posicionar no jogo que se propõe. 

De algum modo, é um rei inusitado que dobra-se sobre si e tenta determinar o que fazer consigo mesmo. A posição em que se encontra na lógica da escultura, como sujeito-jogador e como peça do tabuleiro, autoriza uma reflexão, um questionamento, absolutamente único que só quem tem consciência pode elaborar: o que eu devo fazer de mim mesmo?

Como foi possível fazer com que um objeto inanimado, um pedaço moldado de qualquer coisa sem vida, uma mera estrutura de cobre, adquirisse alguma forma de consciência de si?

 

VIII

 

É preciso dizer, sobre esta representação de um possível tabuleiro de xadrez, que nada visualmente nos autoriza a imaginar se a partida está no meio-jogo ou nas finais. No entanto, estamos certos que a disputa já começou. O tabuleiro está armado, não há dúvida, mas não podemos distinguir as casas claras e escuras que compõem as fileiras e colunas. Isso parece não importar muito – as regras desse jogo parecem ser outras. De algum modo, ao que parece, as casas são plenamente desnecessárias para este jogo específico que a escultura representa e a tonalidade monocromática de toda a composição nada interferiria na composição e lógica de uma partida. 

Temos a impressão que não é bem a posição que as peças ocupam que determina o valor de um lance ou que determinará quem será vencedor. Este jogo de xadrez, curiosamente, parece não se guiar bem pelos espaços, basta perceber que não tem casas, e, apesar de não podermos estar certos de quem é o adversário em potencial do rei-jogador, temos a nítida impressão que o rei ganhará o jogo. 

Seus braços longos parecem ser resolutos e envolvem todo o tabuleiro dando a impressão de que domina a situação. O corpo esguio não se curva nem um pouco, afronta o adversário, e sua cabeça sequer olha para o tabuleiro, mas sim, diretamente para o opositor em potencial, que ainda que invisível, é, sem dúvida, prontamente desafiado a cada lance.  

Os chifres são por demais simétricos, longilíneos, rígidos e, apontando para cima, dão uma sensação de que este rei tem poder de verdade. São chifres muito particulares, pois, no fundo, são inclusive, viris. 

O rei-jogador domina a situação, não há dúvida. Está tão integrado ao jogo que se propõe, inclusive, como peça no tabuleiro. Sujeito e objeto se confundem aqui. É uma posição arriscada, por certo, afinal, o que significaria para este jogador não muito habitual a hipótese de ser colocado em xeque-mate no fim da partida?

E, no entanto, temos a nítida impressão que isso não vai acontecer. De algum modo surpreendente, trata-se de uma disputa e tanto – o rei está jogando xadrez nem tanto contra um adversário em potencial, mas sim contra a tradição imemorial que define os limites da arte perante o real. Uma peça inanimada não pode ter consciência de seus próprios atos e agir de acordo com eles, reza a tradição em que se inscreve a verdade do real. 

Mas, esse rei está a colocar em xeque-mate esse pressuposto aparentemente inabalável. 

O fazer artístico da escultura, aqui, não representa o real e nem cria objetos novos que não existem. Esse rei supera o não existir e saindo do mundo dos objetos inanimados, fugindo da morte eterna a que todos os seres sem vida estão fadados, se auto-inventa e se afirma no mundo como um objeto consciente e vivo. Um pedaço de alguma coisa sem vida, incapaz obviamente de pensar sobre qualquer coisa, inclusive sobre si, subitamente e sem maiores avisos acorda para o mundo e quer refletir sobre o que fazer consigo. A inércia dos objetos inanimados, uma das convenções mais arraigadas da percepção costumeira que as pessoas têm sobre o real, é prontamente colocada em xeque por esse rei que desafia as regras do jogo tradicionais. Curioso notar que esse rei se afirmou no mundo da vida por meio de um ato de rebeldia, e que essa não submissão, em geral, é própria dos homens compostos de carne e osso (e não de objetos feitos de cobre, é claro). Ao negar a inata inércia dos objetos inanimados – ele determina seu próprio movimento no tabuleiro – o rei contraria todo um mundo, isso é verdade, mas, no entanto, é o fato de pensar a si mesmo, a reflexão, o que lhe retira de uma eterna condição estática.  

E a arte dá, mais uma vez, uma lição na realidade, clamando pela vida, ultrapassando os limites do código verdade, nesse mundo cuja morte costumava ser a única certeza. Tudo morre, ou sempre esteve morto. O rei triunfa nessa partida de xadrez com a essência das coisas, e saindo de uma morte inquestionável, completamente do nada, da profunda ausência de inteligência, do cobre mais inanimado, inverte a lógica do jogo, e diz sim à vida, à vida, à vida!

 

IX

 

Em algum lugar, um rei jogando com um rei jogando com um rei jogando com um rei inverte a regra do jogo que inverte a regra do jogo que inverte a regra do jogo que inverte a regra do jogo e diz sim quando se dizia não se diz sim quando se dizia não se diz sim quando se dizia não se diz sim em hipótese alguma hipótese alguma hipótese alguma hipótese do real do real do real do real do impossível será possível do impossível será possível do impossível será possível do impossível será possível do impossível será possível nascer do nascer do nascer do nascer da morte da morte da morte da morte a vida consciente da vida consciente da vida consciente da vida.

 

X

 

Em algum lugar, um rei jogando com um rei inverte a regra do jogo e diz sim quando se dizia não, em hipótese alguma do real, do impossível será possível nascer da morte a vida consciente da vida. 

 

XI

 

Esta é uma obra que pode e deve absolutamente existir.

 

XII

Esta é uma obra que verdadeiramente existe.

 

XIII

Esta é uma obra que realmente existe

 

XIV

 

Esta é uma obra que existe.

A Evidência Eterna, 1930 (Magritte) Ou Sinédoque: uma mulher

I

 

Dividir uma mulher em partes. Recortar a sua imagem. É preciso saber se ela sobrevive a uma estrutura fragmentária. Existe toda uma técnica em separar uma mulher de si mesma. Talvez seja possível continuar a dividi-la até uma dimensão infinitesimal. Mas, pode bem ser que seu potencial erótico não resista. 

 

II

 

Existem cinco pinturas de uma mesma mulher.

A face, os seios, o ventre, os joelhos e os pés. 

A face, levemente ruborizada, aponta para uma mulher jovem, o que condiz com os seios, ainda firmes. É o semblante de uma mulher pouco resoluta e de vontades fugazes. Ela quase não tem barriga e seus pelos pubianos escuros entram em contraste com o corpo muito claro. Há algo de vacilante em seus joelhos. Eles, também, parecem ser meio tortos, virados demais para dentro. Neles, o osso desponta por cima da carne e, logo acima, temos coxas um pouco magras, ligeiramente descarnadas, a completar uma das imagens parciais. Os pés parecem ser grandes, mas isso pode ser meramente a impressão que causam devido ao fato de serem representados em um quadro exclusivo. 

Existem muitos homens que se interessam pela beleza facial. Nesse caso, ela não causará maior impressão, uma vez que não é particularmente bela. 

Claro que existem aqueles que se interessam pelas zonas erógenas mais essenciais. Os seios e o ventre, nesse caso, não se destacam propriamente, a bem da verdade, são bem comuns ao que tudo indica. 

Poucos homens se interessam por pés. Porém, os que os notam, são sempre extremamente rigorosos quando é o caso de analisá-los. Esses homens que se apaixonam por pés são, em geral, os que mais se tornam obcecados. Criam fantasias sobre o assunto. E, nesse caso, ela tem verdadeiramente algo a oferecer porque seus pés são bem constituídos, com os dedos do tamanho correto, proporcionais entre si. 

Mas, são os joelhos que chamam a atenção. Mistura de carne e osso, eles causam uma sensação particular. Existe algo de hesitação em sua constituição. Certamente não são os joelhos de uma mulher assertiva. Pode ser que o fato de serem tortos implique em uma mulher de caráter volúvel. Porém, isso não é totalmente certo. E, apesar de serem joelhos voltados por demais para dentro, há algo que causa interesse em seu formato. Pode-se dizer que existe um charme todo próprio nos joelhos tortos de mulheres pouco resolutas e de vontades fugazes.

 

III

 

  De todos os truques elaborados para a pintura destas cinco telas, um se destaca pela sutileza.

Na tela em que podemos ver a representação dos seios da mulher, podemos ver o seio esquerdo quase em sua totalidade. Ele se apresenta meio que de frente para o observador e podemos ver o seu bico rosado por completo. O outro seio, o direito, por sua vez, está ligeiramente de lado para quem o vê, dada a posição que a mulher se encontra. Para falar a verdade, a tela corta a imagem bem no bico do seio, de modo a não podermos vislumbrá-lo por completo. Isso garante a impressão de instantâneo da imagem. Igual a uma foto tirada por um fotógrafo de ocasião que, sem querer, cortou um pedaço de uma imagem que ele pretendia retratar. 

Como o corte não é por demais saliente – ainda vemos um dos bicos e a maior parte dos seios –, não nos importamos, em um primeiro momento, com a questão e completamos a imagem do bico direito com a nossa própria imaginação. Todo truque do pintor, nesse caso, é nos forçar a mirar a pintura uma segunda vez. Para certificarmos que o seio direito não estava efetivamente com o bico de todo aparente. 

É justamente quando sentimos a falta da representação completa do bico do seio direito o momento mais importante da análise das imagens fragmentárias que nos são dadas. Pois é na percepção do que foi subtraído do olhar pela lógica da pintura que acabamos por prestar maior atenção no que efetivamente podemos enxergar. O que não se vê, curiosamente, torna possível que fiquemos mais atentos ao que potencialmente podemos ver. 

É claro que estas idas e vindas do olhar sobre a pintura, um olhar que se perfaz somente na medida em que se dá por uma segunda apreciação sucessiva, correspondem a algumas das artimanhas que o pintor arquitetou para nos obrigar a perceber que ver, muitas vezes, é inevitavelmente rever.  

 

IV

 

Representando uma mulher aos pedaços, a tela, ao mesmo tempo, curiosamente, constrói sua completude. A disposição das telas internas respeita o modo como o corpo se estrutura. Não há, nesse sentido, a necessidade de juntar as telas internas como se tratassem de um quebra-cabeça. O prazer de observar esse quadro não vem de uma hipotética reconstrução mental, fruto da imaginação, em que se coloca ordem no que está embaralhado. Não se trata de um esforço em reorganizar o que foi propositalmente recortado. Não é disso que se trata.

É preciso ter em mente, então, que é a fragmentação em si, a divisão da mulher em pedaços, o que importa perceber na estrutura do quadro. Telas dentro de tela, as imagens que podemos ver nos quadros internos a obra não são paradoxais, não são potencialmente improváveis tampouco. De fato, talvez estejam um pouco desproporcionais – a imagem dos seios é muito maior que a dos joelhos e coxas, por exemplo –, mas seguem a lógica de uma representação de uma mulher plenamente possível. 

Há algo de fotografia nessa pintura. Os quadros internos a tela propriamente dita lembram instantâneos. Flashs. Momentos do corpo de uma mulher. Além disso, são extremamente bem desenhados – não a ponto de se negar como pintura, é claro –, e também não pretendendo ser uma reprodução fotográfica, mas proporcionando ao observador a imagem de uma mulher bem traçada em suas características principais. 

O segredo dessa pintura consiste em conseguir dar uma expressividade especial a cada uma das cinco partes que foram representadas na tela principal. Ao separar em quadros menores a imagem da mulher, foi possível singularizar cada um dos recortes, dar especial relevo para cada parte do corpo, dos pés à cabeça, de modo a garantir a construção de um significado diferente da ideia de fazer cinco quadros separados da mesma mulher. 

Então, em cada uma das cinco partes, com sucesso, foi possível retratar, com especial acuidade, a lógica do todo. Cada um dos quadros pode representar, perfeitamente, a soma dos demais.

Existe certa completude nisso – qualquer uma das telas internas está apta a representar a mulher como um todo. O que contraria uma percepção que salta aos olhos quando alguém se propõe a investigar detidamente cada uma das cinco telas: todas são incompletas de alguma maneira. 

Na representação da face foi subtraído o olhar direto.

Na representação dos seios, um dos mamilos.

Na imagem do ventre, o sexo foi sequestrado. 

Nos joelhos e coxas, a carne.

Nos pés, os dedos.

Talvez seja isso o mais importante desse quadro singular. Em uma representação de uma mulher, sempre faltará alguma coisa. E isso, não é tanto culpa do pintor que se mostra incapaz de dar conta de todas as características dela. A incompletude não está na arte em si, mas nas próprias mulheres. Recortando, representando, analisando essa pintura estruturada por sinédoques de uma mulher, uma ideia se propõe inevitavelmente: toda mulher é incompleta a seu modo. 

 

V

 

Não se trata de falar sobre os pés, é bom que se diga, mas dos dedos. O sequestro dos dedos do pé esquerdo de uma mulher incomoda mais do que qualquer outra ausência. Esse desaparecimento é o que realmente inviabiliza o potencial erótico de uma pintura que apresenta a nudez prontamente. Os dedos, sejam quais forem, para os homens normais, são passaportes para ideias extravagantes sobre o sexo. O que é perfeitamente natural. Claro que as pessoas que não pensam assim, depravadas, têm desejos mais comprometedores a esconder.