Rodrigo Suzuki Cintra

Shakespeare e Maquiavel – A Tragédia do Direito e da Política

PREFÁCIO, por Tercio Sampaio Ferraz Junior

 

Rodrigo Suzuki Cintra busca, neste trabalho, estabelecer uma relação entre política (centrada nuclearmente no poder) e direito (centrado na justiça) a partir da ideia de tragédia. Para isso se vale das obras O Príncipe, de Maquiavel, e Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth, de Shakespeare.

Trata-se de um trabalho original, fruto de sua tese de doutoramento, que tive a satisfação de orientar. 

De um lado, está Maquiavel, em O Príncipe, que sabe e sustenta o que é a ética cristã. Mas que, segundo o autor, propicia aos homens de virtù, a certos príncipes, a possibilidade de agir completamente fora da ética cristã. Não é que ele não saiba distinguir o certo do errado (segundo os padrões da moralidade cristã). É só que essa ética não pode vincular a ação dos homens de virtù. Resultado: se o conflito entre duas ordens de valores essenciais é fundante na tragédia, Maquiavel opera esse conflito constantemente ao longo da obra.  

De outro, Shakesperare. Todos os personagens trágicos de Shakespeare selecionados pelo autor para seu trabalho (Hamlet, Otelo, Macbeth e Lear) são homens de poder, “príncipes”, segundo o vocabulário de Maquiavel. Eles podem querer mais poder (Macbeth), estar submetido à lógica da sucessão do poder (Hamlet) ou perder o poder (Otelo e Lear). 

 

O autor caracteriza os personagens trágicos das quatro obras escolhidas para a sua análise de Shakespeare a partir da dicotomia Virtù e Fortuna, própria de Maquiavel. Todos eles têm virtù (Hamlet e Macbeth), ou já tiveram, outrora (Lear) ou a perdem ao longo do enredo das peças (Otelo). Hamlet seria, assim, o personagem mais inteligente da história da literatura. Só comparável a Ulisses. Porém, suas inteligências seriam diferentes. Ulisses é a astúcia da razão. Hamlet é “o retrato de um filósofo quando jovem…” (como caracteriza Rodrigo Suzuki Cintra, em uma alusão a James Joyce). 

 

Nesse jogo de iluminação, busca o autor entender como a ética política de Maquiavel, oposta a ética cristã, pode auxiliar a compreender as atitudes dos personagens shakespearianos. Aí seu empenho em identificar em Shakespeare os personagens maquiavélicos. Cláudio (Hamlet), Iago (Otelo), Macbeth e Lady Macbeth tornam-se exemplos de personagens completamente malévolos que seguem a lógica maquiavélica. É a tensão entre aparência e essência, própria de Maquiavel, que elogia as aparências em detrimento da essência: Cláudio, Iago, Goneril-Reagan-Edmund (Rei Lear), Macbeth e Lady Macbeth são personagens a simular suas verdadeiras intenções o tempo todo. “Para mim, quem manipula jamais erra.” – Edmund. “Vilão, vilão, sorridente e amaldiçoado vilão.” – Hamlet diz sobre Cláudio. “Vamos, mostrando ar sereno e são,/ O rosto esconde o falso coração.” – Macbeth.

A ideia de tragédia aparece, neste livro, como um ponto de fuga para o desenho das relações entre poder e justiça no início da modernidade. E nisso vê Suzuki Cintra uma espécie de semelhança desconcertante entre os dois autores: ambos teriam uma concepção de poder e justiça que se poderia chamar de trágica.

Esse é um ponto interessante a merecer uma curta reflexão, a que me proponho, a título de um breve prefácio.

A tragédia. O temor diante do horror ou provocado pelo horror faz parte da tragédia, mas não em termos de uma fuga para a resignação e sim em termos de uma afirmação do temível como algo que pertence imutavelmente ao belo. A tragédia é o lugar onde se afirma o temível como pertencente à beleza em contradição interna. Daí o ato heroico como um ir ao encontro, simultaneamente, do maior sofrimento e da maior esperança. 

Ou, nas palavras de Walter Benjamin (A origem do drama trágico alemão, Lisboa, 2004, p.116), o herói trágico estremece ante o poder da morte, mas como algo que lhe é familiar, próprio e destinado. A sua vida desenvolve-se a partir da morte, que não é o seu fim, mas a sua forma, pois a existência trágica só chega à sua realização porque os limites, os da vida na linguagem e os da vida no corpo, lhe são dados ab initio e lhe são inerentes. Por isso a obstinação do herói é uma obstinação muda, que resgata com sua vida o direito ao seu silêncio.  

Em Shakespeare a tragédia toma um sentido próprio, quando fincada na relação de poder, um núcleo sensível que repousa na capacidade de mandar e ser obedecido. 

Shakespeare tem ainda um olho no poder medieval, preso à concepção ritualística da realeza, cuja legitimidade se baseia na herança transmitida pelo sangue. Como a terra de onde vem a seiva que alimenta as plantas, é o sangue que transmite o poder, donde as séries hereditárias que legitimam a autoridade. Conspurcar o sangue, como se vê em Hamlet, é conspurcar a legitimidade da herança e do poder, cujo mecanismo deve ser respeitado. Um mecanismo intemporal, que apenas depende dos ciclos naturais das estações, em que tudo nasce, vive e morre para renascer, num movimento que perpetua o mando e dá as normas da obediência.

Está aqui presente a antiga doutrina dos dois corpos do rei, uma das mais importantes da teologia medieval, que repousava no duplo sentido do corpo de Cristo. Fruto de um longo desenvolvimento que remonta à Igreja dos primeiros séculos, a doutrina desenvolve e precisa o mito do rei imago Dei. Enquanto representante de Deus na terra, o rei emprestaria algo da natureza de Cristo: o corpo natural, submetido às vicissitudes da vida e o corpo místico ou político, donde a legitimidade do poder real. 

François Ost (Shakespeare, La Comédie de la Loi, Paris, 2012, p.164) reporta um poema alegórico do bardo inglês (The Phoenix and the Turtle), escrito no momento em que ocorriam os debates em torno da sucessão de Elisabeth Iª, em que o mito da ave que renasce das próprias cinzas, portanto mortal e imortal, é usado para celebrar a máxima: o rei está morto, viva o rei. Shakespeare mostraria em suas peças uma espécie de interiorização da teoria, na medida em que seus personagens vão, a pouco e pouco, encontrando em si mesmos a origem principal dos males que os afligem.

O outro olhar estaria na interpretação materialista e realista de Maquiavel, em que não seria a teologia política, mas o cinismo dos príncipes que faz a história, em que a eficiência pode suprir a legitimidade da origem no sangue.  Antonio Cândido (O albatroz e o chinês, Rio de Janeiro, 2010, p. 47) faz menção, com apoio em Barbara Heliodora (A expressão dramática do homem político em Shakespeare, Rio de Janeiro, 1978), à hipótese de que o poeta conhecia já melhor o pensamento de Maquiavel, quando apresentou a usurpação politicamente válida do reino de Ricardo II por seu primo, Bollingbroke. Tratava-se da incompetência do monarca deposto, sua desmedida noção de privilégio e sua clamorosa irresponsabilidade.

Em lugar do mundo do sangue e da terra, entra o mundo do dinheiro, da burguesia já triunfante, em que o tempo conta, não mais como a terra, quando bem econômico básico e intemporal, mas como um tempo escasso, em que o indivíduo se faz em ritmo acelerado de acumulação e produção racional (Antonio Cândido, p. 56). Aqui aparece um sentido irônico da tragédia, favorável à ambiguidade, em que se embaralha o que é com o que parece ser. Em que aquele que pensa mandar pode ser apenas um joguete e o joguete até mais poderoso do que aquele que manda. E onde a morte é forma suprema de mandar, para quem pode determiná-la e também, de se submeter, para quem a sofre.

Esse mecanismo maquiavélico, que Shakespeare personifica na forma de fortuna e virtú, reúne, sob a forma de contingência e sorte, de felicidade e infelicidade, os critérios justos de legitimidade, os critérios factuais de eficácia nos critérios jurídicos de legalidade. Cujo sentido trágico se traduz em certa fraqueza do poderoso, como o rei Lear que, ao fim da vida, imagina uma artimanha que lhe permita conservar a dignidade real do sangue e desembaraçar-se dos encargos da eficiência, mediante um jogo jurídico de renúncia que faz dele uma variante da questão hamletiana: ser ou ter sido rei

Trata-se, talvez, da introdução, na doutrina dos dois corpos do rei, de um terceiro corpo, como se vê em Hamlet: o corpo da rainha que se interpõe entre o corpo natural e o corpo místico do rei, alimentando a hesitante confusão mental que o acossa até o fim: ser ou não ser.

Encerro com uma observação sobre um empenho metódico que vale ser acompanhado e para o qual se convida o leitor. Rodrigo Suzuki Cintra realiza, com este livro, um trabalho de filosofia, a partir de uma estratégia própria: buscar o conteúdo político-jurídico por trás da arte Shakespeareana e o conteúdo artístico trágico-literário de Maquiavel por trás dos argumentos da política. E que ele assim resume ao final de seu texto: “A verdadeira tragédia implícita nas relações entre política e direito é que a sobreposição entre as duas esferas seria algo mais próximo da ordem do discurso que da ordem da prática. E, por outro lado, a irredutibilidade das duas esferas, seu desacoplamento, daria conta do mundo da práxis, mas seria insustentável como discurso. De uma maneira curiosa, o trágico como algo inexorável, algo que não podemos determinar nos dá uma escolha: é desejável que o poder seja justo – esta é a prática que conseguimos depreender da dimensão “teórica” de Shakespeare  –, porém, percebemos que o poder não precisa ser necessariamente justo – esta é a teoria que podemos ler no manual prático de Maquiavel. Mas, como em toda tragédia, a escolha que nos é dada é a de sempre fazer as escolhas erradas. Talvez sempre as mesmas escolhas.”  


Tercio Sampaio Ferraz Junior.

 

Citação de Trecho de Shakespeare e Maquiavel – A Tragédia do Direito e da Política

 

“A verdadeira tragédia implícita nas relações entre política e direito é que a sobreposição entre as duas esferas seria algo mais próximo da ordem do discurso que da ordem da prática. E, por outro lado, a irredutibilidade das duas esferas, seu desaclopamento, daria conta do mundo da práxis, mas seria insustentável como discurso. De uma maneira curiosa, o trágico como algo inexorável, algo que não podemos determinar, nos dá uma escolha: é desejável que o poder seja justo – esta é a prática que conseguimos depreender da dimensão “teórica” de Shakespeare –, porém, percebemos que o poder não precisa ser necessariamente justo – esta é a teoria que podemos ler no manual prático de Maquiavel. Mas, como em toda tragédia, a escolha que nos é dada é a de sempre fazer as escolhas erradas. Talvez sempre as mesmas escolhas.” (pgs. 177-178) 

 

 

Rodrigo Suzuki Cintra

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Alameda Editorial