Rodrigo Suzuki Cintra

A Galeria Invisível - Cap. XII

Xícara, Pires e Colher cobertos de Pelo, 1936, (Oppenheim) Ou O suporte radical

 

I

A tensão sexual vem da forma.

Entre o côncavo e o convexo – o longilíneo. Colocá-lo em funcionamento é iniciar o complexo jogo que é próprio da cópula. 

É preciso imaginar a introdução desse objeto-membro dentro daquela abertura peluda. Não conseguimos pensar em outra hipótese possível, outra utilidade para esse objeto masculino e esse buraco feminino. Imaginar o sexo, aqui, é quase tão fácil quanto tomar uma xícara de chá ou café: antes de beber o líquido aguado, introduzimos o talher para mexer o açúcar e tornar doce o que é naturalmente amargo por natureza.

O buraco da estrutura feminina é convidativo; mesmo com aquela quantidade enorme de pelos em seu interior. 

Nunca conhecemos uma mulher que fosse peluda por dentro do próprio sexo. Mas claro que isso não significa muita coisa: existem inúmeras variações de vaginas e não resta dúvida que alguma mulher, em algum lugar, possui pelos por dentro. Talvez, seja o caso de colocar um anúncio nos jornais. Certamente apareceria alguma mulher com uma vagina desse tipo para clamar por algum prêmio. 

De resto, não é preciso, ao que nos parece, ter algum fetiche por utensílios de tomar chá para enxergar a questão sexual inerente à composição. Basta, apenas, nesse caso, pensar em colocar em movimento a estrutura como um todo. 

Entre o côncavo e o convexo penetra o longilíneo. 

II

Existe algo de estranho em colocar essa obra sobre um suporte qualquer. Temos essa sensação, possivelmente, porque ela, em si, já contém uma espécie de suporte. Pode se dizer, inclusive, que é o suporte mais natural a composição. 

O pires é um utensílio de cozinha que se assemelha a um pequeno prato e que serve muitas vezes de apoio para xícaras. Neste caso, no entanto, tem a função de servir de base para uma xícara e uma colher especiais. 

As esculturas têm suportes dos mais variados tamanhos e formatos. Elas servem para destacar os objetos artísticos, diferenciar o que é arte do que é um mero elemento que compõe nosso campo de visão. O suporte das esculturas não faz parte, geralmente, da própria obra, assim como as molduras de quadros, também não são elementos das próprias pinturas. As molduras são igualmente suportes a indicar o que é obra de arte e o que não faz parte do produto da imaginação artística. 

Esta obra singular, porém, já contém o seu suporte. Trata-se do pires que sustenta os dois outros elementos da composição. É um caso propriamente original porque este pires, ao mesmo tempo em que é o suporte, como não poderia deixar de ser dada a sua função tradicional, também faz parte da própria obra de arte. 

Dispor essa composição sobre um suporte, portanto, seria efetuar uma repetição e, ao mesmo tempo, negar ao pires sua dupla função: suporte e elemento da obra. Seria desrespeitar, profundamente, a astúcia desse arranjo especial, original a sua maneira, e operar uma diminuição de seu caráter propriamente contraditório e artístico. Em suma, seria uma burrice sem tamanho. 

III

A estrutura é contraditória.

Composta de pires, xícara e colher, todos objetos de indústria, esses elementos são recobertos por pelos. De algum modo, não passam de produtos artificiais criados pelo homem e, portanto, não têm origem orgânica. 

Os pelos, não obstante, remetem inevitavelmente a alguma espécie de ser vivo, algum animal que os possua em abundância, uma vez que os três objetos da composição são plenamente felpudos.

Ora, para que servem, então, esses elementos?

Não são exatamente objetos úteis para tomar chá – os pelos se acumulariam em nossas bocas –, e, também, não são obviamente animais, não podem empreender movimento e nos divertir. 

Os pelos negam a função de utensílio doméstico. A forma nega um caráter propriamente animalesco. 

Não sendo útil de alguma maneira mais evidente, ou melhor, sendo inútil a seu modo, talvez ainda sobre uma alternativa para essa composição inusitada: pode ser que seja o que os desocupados chamam de arte. 

E para evitar que alguém confunda essa escultura com pires, xícara e colher de verdades ou apelidem a coisa toda com algum nome idiota, como costumamos fazer com os cachorros, seria uma boa ideia garantir que a estrutura seja realmente considerada uma obra de arte. Para isso, basta prendê-la em algum museu, pois, segundo nossas convenções, o que está no museu é indubitavelmente alguma espécie de arte. Não é bem que algo seja arte e, por isso, fique exposto no museu, mas é porque está no museu que se torna arte.

A questão toda gira em torno do fato de que é a profunda inutilidade dessa composição que pode, inversamente, garantir alguma espécie de significado, um sentido de obra para a coisa toda. 

IV

Xícara, pires e colher cobertos de pelo são o que são e dispostos em uma galeria hipotética arrumam encrencas por sua aparente simplicidade singular. Mas, existe uma certa forma de desrespeito do bom gosto que cai muito bem a arte de escândalo. É bom que a composição seja exposta para o público, os críticos de ocasião terão que enfrentar o medo de que a arte faz sentido ao se perfazer em arte em si mesma.