I
Dividir uma mulher em partes. Recortar a sua imagem. É preciso saber se ela sobrevive a uma estrutura fragmentária. Existe toda uma técnica em separar uma mulher de si mesma. Talvez seja possível continuar a dividi-la até uma dimensão infinitesimal. Mas, pode bem ser que seu potencial erótico não resista.
II
Existem cinco pinturas de uma mesma mulher.
A face, os seios, o ventre, os joelhos e os pés.
A face, levemente ruborizada, aponta para uma mulher jovem, o que condiz com os seios, ainda firmes. É o semblante de uma mulher pouco resoluta e de vontades fugazes. Ela quase não tem barriga e seus pelos pubianos escuros entram em contraste com o corpo muito claro. Há algo de vacilante em seus joelhos. Eles, também, parecem ser meio tortos, virados demais para dentro. Neles, o osso desponta por cima da carne e, logo acima, temos coxas um pouco magras, ligeiramente descarnadas, a completar uma das imagens parciais. Os pés parecem ser grandes, mas isso pode ser meramente a impressão que causam devido ao fato de serem representados em um quadro exclusivo.
Existem muitos homens que se interessam pela beleza facial. Nesse caso, ela não causará maior impressão, uma vez que não é particularmente bela.
Claro que existem aqueles que se interessam pelas zonas erógenas mais essenciais. Os seios e o ventre, nesse caso, não se destacam propriamente, a bem da verdade, são bem comuns ao que tudo indica.
Poucos homens se interessam por pés. Porém, os que os notam, são sempre extremamente rigorosos quando é o caso de analisá-los. Esses homens que se apaixonam por pés são, em geral, os que mais se tornam obcecados. Criam fantasias sobre o assunto. E, nesse caso, ela tem verdadeiramente algo a oferecer porque seus pés são bem constituídos, com os dedos do tamanho correto, proporcionais entre si.
Mas, são os joelhos que chamam a atenção. Mistura de carne e osso, eles causam uma sensação particular. Existe algo de hesitação em sua constituição. Certamente não são os joelhos de uma mulher assertiva. Pode ser que o fato de serem tortos implique em uma mulher de caráter volúvel. Porém, isso não é totalmente certo. E, apesar de serem joelhos voltados por demais para dentro, há algo que causa interesse em seu formato. Pode-se dizer que existe um charme todo próprio nos joelhos tortos de mulheres pouco resolutas e de vontades fugazes.
III
De todos os truques elaborados para a pintura destas cinco telas, um se destaca pela sutileza.
Na tela em que podemos ver a representação dos seios da mulher, podemos ver o seio esquerdo quase em sua totalidade. Ele se apresenta meio que de frente para o observador e podemos ver o seu bico rosado por completo. O outro seio, o direito, por sua vez, está ligeiramente de lado para quem o vê, dada a posição que a mulher se encontra. Para falar a verdade, a tela corta a imagem bem no bico do seio, de modo a não podermos vislumbrá-lo por completo. Isso garante a impressão de instantâneo da imagem. Igual a uma foto tirada por um fotógrafo de ocasião que, sem querer, cortou um pedaço de uma imagem que ele pretendia retratar.
Como o corte não é por demais saliente – ainda vemos um dos bicos e a maior parte dos seios –, não nos importamos, em um primeiro momento, com a questão e completamos a imagem do bico direito com a nossa própria imaginação. Todo truque do pintor, nesse caso, é nos forçar a mirar a pintura uma segunda vez. Para certificarmos que o seio direito não estava efetivamente com o bico de todo aparente.
É justamente quando sentimos a falta da representação completa do bico do seio direito o momento mais importante da análise das imagens fragmentárias que nos são dadas. Pois é na percepção do que foi subtraído do olhar pela lógica da pintura que acabamos por prestar maior atenção no que efetivamente podemos enxergar. O que não se vê, curiosamente, torna possível que fiquemos mais atentos ao que potencialmente podemos ver.
É claro que estas idas e vindas do olhar sobre a pintura, um olhar que se perfaz somente na medida em que se dá por uma segunda apreciação sucessiva, correspondem a algumas das artimanhas que o pintor arquitetou para nos obrigar a perceber que ver, muitas vezes, é inevitavelmente rever.
IV
Representando uma mulher aos pedaços, a tela, ao mesmo tempo, curiosamente, constrói sua completude. A disposição das telas internas respeita o modo como o corpo se estrutura. Não há, nesse sentido, a necessidade de juntar as telas internas como se tratassem de um quebra-cabeça. O prazer de observar esse quadro não vem de uma hipotética reconstrução mental, fruto da imaginação, em que se coloca ordem no que está embaralhado. Não se trata de um esforço em reorganizar o que foi propositalmente recortado. Não é disso que se trata.
É preciso ter em mente, então, que é a fragmentação em si, a divisão da mulher em pedaços, o que importa perceber na estrutura do quadro. Telas dentro de tela, as imagens que podemos ver nos quadros internos a obra não são paradoxais, não são potencialmente improváveis tampouco. De fato, talvez estejam um pouco desproporcionais – a imagem dos seios é muito maior que a dos joelhos e coxas, por exemplo –, mas seguem a lógica de uma representação de uma mulher plenamente possível.
Há algo de fotografia nessa pintura. Os quadros internos a tela propriamente dita lembram instantâneos. Flashs. Momentos do corpo de uma mulher. Além disso, são extremamente bem desenhados – não a ponto de se negar como pintura, é claro –, e também não pretendendo ser uma reprodução fotográfica, mas proporcionando ao observador a imagem de uma mulher bem traçada em suas características principais.
O segredo dessa pintura consiste em conseguir dar uma expressividade especial a cada uma das cinco partes que foram representadas na tela principal. Ao separar em quadros menores a imagem da mulher, foi possível singularizar cada um dos recortes, dar especial relevo para cada parte do corpo, dos pés à cabeça, de modo a garantir a construção de um significado diferente da ideia de fazer cinco quadros separados da mesma mulher.
Então, em cada uma das cinco partes, com sucesso, foi possível retratar, com especial acuidade, a lógica do todo. Cada um dos quadros pode representar, perfeitamente, a soma dos demais.
Existe certa completude nisso – qualquer uma das telas internas está apta a representar a mulher como um todo. O que contraria uma percepção que salta aos olhos quando alguém se propõe a investigar detidamente cada uma das cinco telas: todas são incompletas de alguma maneira.
Na representação da face foi subtraído o olhar direto.
Na representação dos seios, um dos mamilos.
Na imagem do ventre, o sexo foi sequestrado.
Nos joelhos e coxas, a carne.
Nos pés, os dedos.
Talvez seja isso o mais importante desse quadro singular. Em uma representação de uma mulher, sempre faltará alguma coisa. E isso, não é tanto culpa do pintor que se mostra incapaz de dar conta de todas as características dela. A incompletude não está na arte em si, mas nas próprias mulheres. Recortando, representando, analisando essa pintura estruturada por sinédoques de uma mulher, uma ideia se propõe inevitavelmente: toda mulher é incompleta a seu modo.
V
Não se trata de falar sobre os pés, é bom que se diga, mas dos dedos. O sequestro dos dedos do pé esquerdo de uma mulher incomoda mais do que qualquer outra ausência. Esse desaparecimento é o que realmente inviabiliza o potencial erótico de uma pintura que apresenta a nudez prontamente. Os dedos, sejam quais forem, para os homens normais, são passaportes para ideias extravagantes sobre o sexo. O que é perfeitamente natural. Claro que as pessoas que não pensam assim, depravadas, têm desejos mais comprometedores a esconder.
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