“Para uma vez ver com distância nossa moralidade européia, para medi-la com outras moralidades, anteriores ou vindouras, é preciso fazer como faz um andarilho que quer saber a altura das torres de uma cidade: para isso ele deixa a cidade. ‘Pensamentos sobre preconceitos morais’, caso não devam ser preconceitos, pressupõem uma posição fora da moral, algum além de bem e mal, ao qual é preciso subir, galgar, voar – e no caso dado, em todo caso, um além de nosso bem e mal, uma liberdade diante de toda ‘Europa’, esta última entendida como uma soma de juízos de valor imperativos, que nos entram na carne e no sangue.”
Nietzsche, A Gaia Ciência, aforismo 380.
Talvez valha a pena considerar, em primeiro lugar, o que simboliza Europa no referido aforismo que escolhemos comentar. A Europa ali é entendida como o conjunto hereditário cultural de nossa tradição, conjunto de convicções que compõe a consciência do homem culto de nosso tempo. É, por assim dizer, um território conhecido em que filosofia e moralidade cristã estão em comunidade. Um local em que a moral nunca suscitou um verdadeiro problema para a filosofia, já que todos os filósofos participavam daquele campo de unanimidade em que a moral, universalizada, nunca era colocada em questão.
Nietzsche enuncia a necessidade da figura do andarilho para descortinar o que estava submerso dentre as certezas dos círculos bem-pensantes da Europa de seu tempo e do passado. O andarilho é uma figura notável. Sabe-se de onde partiu, de um lugar de certezas e convicções, e também se sabe que tenta, à distância, enxergar melhor o que ninguém viu nem questionou. Ele caminha ao léu e parece não ter um porto de chegada, na medida em que é um experimentador, um investigador de nossos costumes e vive a título de experiência. Ele busca um território novo, de onde se enuncia a fala. E, assim, entra em confronto com o homem de convicções, este metafísico embutido, que acredita em verdades universais.
Esse andarilho, que pode ser um “espírito livre”, se impõe uma tarefa radical no que diz respeito à análise de nossa moral, a saber: se perguntar sobre o valor de nossos valores. Essa avaliação coloca sob regime de suspeita toda moralidade tradicional. O andarilho se pergunta se não é possível encontrar trapaças ocultas em nossos mais elevados valores. Ele derruba nossos ídolos e denuncia toda forma de mistificação – inclusive os valores mais venerados do homem moderno.
É por isso que ele tem de se colocar para além de bem e mal, para assumir um risco: pensar a possibilidade de novos valores. Situar-se para além do bem e do mal é, no limite, situar-se também para além da verdade e da mentira. Isso se continuarmos em regime de cacoete metafísico. Não é à toa que ele denuncia uma moralidade vulgarizada em antigos valores metafísicos. O andarilho tem de pôr estes valores em xeque. Enxergar para além de toda moralidade tradicional.
Nesse sentido, Nietzsche se considera o primeiro niilista perfeito da Europa. As noções de verdade, falsidade, bem, mal e virtude são relativizadas porque não respondem mais a pergunta sobre o sentido da existência. Não existem fatos eternos, nem verdades absolutas. Encontramos a desvalorização de todos os valores, em especial o valor verdade, porque o niilismo completo é o abandono do código conhecimento. Em regime de niilismo, cada um entende o mundo como quiser, o mundo é interpretação e perspectiva e, assim, constante criação. Não existem mais fenômenos morais, existem interpretações morais dos fenômenos. Aliás, nem mesmo ali onde se tinha um porto seguro, o terreno dos fatos, se pode agora contar. Não existem mais fatos, dirá Nietzsche, apenas interpretações. Afinal, o que é interpretar? Nada, senão atribuir valores e fins. Mas somos nós que damos valores e fins às coisas. O mundo não tem valor em si mesmo. Toda interpretação é, portanto, no limite, criação.
Esse pensamento entra em choque com toda a tradição filosófica europeia, que, segundo Nietzsche, nunca havia pensado em colocar seus valores mais profundos, suas crenças dogmáticas mais enraizadas em jogo. Isso significa, portanto, “uma liberdade diante de toda ‘Europa’, esta última entendida como soma de juízos de valor imperativos, que nos entram na carne e no sangue.” Um desprendimento, um passo decisivo, uma nova tomada de posicionamento perante as convicções mais arraigadas do discurso moral europeu.
O andarilho é uma figura de coragem que vê para além de seu próprio tempo. Não é por outro motivo que Nietzsche considerará sua própria filosofia como “não-atual”. Este homem que quer enxergar além deve ultrapassar seu próprio tempo, superar em si esse tempo, pois só assim poderá discernir as medidas de valor de seu tempo e poderá comparar com os valores milenares. O andarilho é aquele que vai colocar a moral no centro de todo questionamento filosófico, como um problema a ser investigado. Por se situar acima de bem e mal, por encontrar um lugar diferente de onde se enuncia a fala – fora da cidade e assim fora da tradição moralista filosófica de Europa – o andarilho pode questionar os valores de nossos valores, sem preconceitos morais. Pode dar um passo a mais do que o puro ceticismo e instituir um novo registro para vida, que ficava meio que acobertado no aforismo que se comenta: o niilismo.
Ao mesmo tempo, esse andarilho que quer partir nessa direção deve reconhecer o caráter irracional que pode parecer, à primeira vista, tal empreitada. A questão, assim colocada, é se se pode ir em tal direção, se é possível desvencilhar-se dos velhos cacoetes de uma Europa filosofante. O andarilho tem de superar em si, antes de todos, aquilo que ele mesmo pretende denunciar. É por isso que é preciso “subir, galgar, voar – e no caso dado, em todo caso, um além de nosso bem e mal”. Nos termos de Nietzsche, é preciso estar mais leve para preencher os requisitos da condição de homem-andarilho. Só assim, os milênios e, ainda mais, nossa moralidade futura poderão ser devidamente sopesados e medidos na balança do valor de nossos valores.
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