Rodrigo Suzuki Cintra

Geometrias de Cosmos

PROSA POÉTICA DE GEOMETRIAS DE COSMOS

 

O TEMPO DESSES POEMAS

(um método de composição exige um método de leitura)

 

Talvez, para uma verdadeira temporalidade da nossa própria história, devemos distinguir os acontecimentos dos olhos abertos daqueles dos olhos fechados. Se existe um mundo de tempo desperto deve existir um mundo de tempo sonhado. 

 Supondo que vivemos um terço de nossas vidas em sono e reconhecemos que isso não implica em nenhum desperdício, devemos igualmente considerar aceitável que em certo momento da vida um homem possa olhar para trás e reconstruir uma história dos acontecimentos sonhados com o mesmo direito que estabelece para si uma história dos episódios em que se encontrava desperto. Mas claro que um tempo assim é algo muito diferente. É preciso, nesse caso, separar toda nossa vida em duas narrativas distintas: na primeira, a mais oficial, encontraríamos a sequência de nossa história de vigília, na outra, paralela e misteriosa, as fabulações de uma história absolutamente fantástica. Que o tempo não siga a mesma lógica durante o sono que segue enquanto estamos acordados não é novidade para ninguém, pois sabemos, por experiência, como é comum que após um longo período de sono alguém que se veja desperto reclame que dormiu pouco e que as horas pareceram minutos; ou que após milhares de fantasias sonhadas, em que se viaja para muitos lugares, conversa com inúmeras pessoas, se vive as mais calorosas aventuras, se compõem os versos mais precisos, alguém se espante que tantos acontecimentos tenham se dado em um breve cochilo. 

Pode ser que isso signifique que o tempo de nossa vida desperta possa ser contado em segundos, minutos e horas, enquanto que o tempo próprio de nossa vida sonhada desorganize plenamente essas convenções de contagem. Além do mais, as conexões temporais que se estabelecem nos momentos em que estamos dormindo e, se for o caso, sonhando, são muito mais atrevidas que aquelas que se formam entre as ocasiões de vigília. Não é, propriamente, que sejam acidentais e nem fortuitas, é bom que se diga, mas sim que operam com base em uma coerência inusitada e mais fabulosa. A relação temporal interna dos sonhos dos homens é louca, sem ser propriamente, insana; é assistemática, mas não sem método por completo, é irreverente, porém tem lá uma ou outra regra. 

 

O tempo do sonho é algo de fumaça. 

Ele recobre o horizonte, mas não o faz completamente. Volteia sob si mesmo, e está entre o que se pode ver por trás de sua consistência de um quase vapor e as suas próprias ocasiões de fuligem que dão o tom da nebulosidade. E, sem maiores avisos, ele nos prega peças ao mudar caprichosamente de forma, duração e intensidade. 

 

A forma do sonho é algo de nuvem. 

 

Também poderia se dizer que a fumaça do sonho é algo de tempo, ou que a nuvem do sonho é algo de forma, se quiséssemos ser bem mais precisos sobre as possibilidades oníricas, mas isso seria um pensamento muito próprio a quem está bem acordado em uma noite de labor sem sono; digamos, um geômetra com muito trabalho atrasado, não é bem o que um sonhador, enquanto estivesse dormindo, pensaria sobre o seu próprio sonho. E como o caso aqui, como veremos, é mais o de convidar a fechar os olhos do que os abrir completamente, talvez valha a pena refletir sobre o valor dos homens que sonham aquelas ilusões mais soltas, digamos, assim, os poetas, ao invés de perder tempo com os raciocínios ordenados que emanam dos homens que parecem sempre estar de olhos abertos.      

A verdade é que o tempo do poema, nessas Geometrias de cosmos, é o tempo de um sonho hipotético, o momento exato em que a nuvem tem uma forma que sugere, de repente, outra forma, naquelas simetrias de nebulosa. 

Se costumamos dar glórias àqueles homens de feitos fora do comum de nossa realidade desperta, os cobrimos de medalhas, contamos suas histórias em nossos livros de história; enchemos o mundo todo de uma esperança que depositamos em seus atos formidáveis, às vezes, vergonhosamente, nos esquecemos dos homens extraordinários em sonho, mestres das façanhas possíveis e também das impossíveis, a quem a ditadura de um mundo desperto que pretende preencher todo o real sempre acaba por ofuscar o brilho fulminante que emana de suas ações maravilhosas, executadas obviamente em regime de sonho, de verso. Todo homem que se permite sonhar é poeta. Pois, inquestionavelmente, poetas não cabem nas medições autoritárias de um mundo insone, e, desafiando todas as leis da física, ao mesmo tempo em que forjam uma temporalidade malcriada, expandem todas as alternativas imediatamente verificáveis e nos tornam propriamente mais humanos não por possuir uma essência mais profunda do que somos, um segredo qualquer, mas por meramente insinuar sermos outras possibilidades de nós mesmos. Mas, frequentemente, quando os homens acordam para o café da manhã se esquecem de seus sonhos: perdem de vista as maravilhosas metáforas que estão inscritas no profundo dos mistérios.

 

É preciso levar o sonho a sério.

 

Anuncio que vivendo meio que entre dois mundos, de madrugada, sempre de madrugada, quando estou mais próximo da escuridão de meus abismos e mais apaixonado do que os loucos, um poema qualquer dessas Geometrias de Cosmos, pode surgir por vezes antes do raiar de um dia, olhando para as constelações e enxergando nitidamente a garota com flores nos cabelos que dança o século em uma fresta de luar. 

 

As estrelas podem anunciar novas e também as antigas sensações.

 

Certa vez, andando pelas ruas da metrópole, naquela hora precisa em que tudo evapora, segredei aos ouvidos de uma prostituta um pouco de meus abismos e amores.

Ela solucionou todo problema com uma lenda, tradição mítica da noite, que começava assim: Era uma vez um homem invisível que vivia entre dois mundos – o do amor e o da morte. Por não se decidir ao certo a qual desses mundos pertencia, tinha uma mania crepuscular: só conseguia sonhar se estivesse acordado, só estava acordado quando estava sonhando… Parece que os sábios dos dois mundos, inimigos que nunca concordavam, nesse único caso, proferiram sentenças iguais: – era por isso, sem dúvida, que ele era invisível. 

 

De modo que fica demonstrado, pela sabedoria da noite, que ler os poemas que surgiram nas madrugadas de minhas Geometrias de cosmos é tarefa que exige um procedimento particular – fechar, às vezes, ligeiramente os olhos -, sentir antes mesmo de entender, como o homem que olha confiante para as galáxias em busca das perplexidades, pois versos sonhados por um homem invisível jamais poderão ter qualquer significado se estivermos plenamente acordados.   

 

 

No invisível das palavras, quando o lado detrás das letras sugere o sentido que o verso segredou, no compasso da escuridão que dá forma à luz, em algum lugar entre sombras de estrelas passageiras e o brilho eterno daquele sentimento, é o tempo da delicadeza: fundo a minha poética.

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