I
Talvez o que a escultura indique não seja mais do que a reunião dos sentidos. É claro que, para isso, é preciso entender cada parte da composição como uma representação simbólica, uma metáfora, de nossos modos de captar o real. A visão, a audição, o paladar e o olfato. Curiosamente, o tato é sequestrado da escultura, justamente o sentido mais propício para contemplá-la. Isso é, se essa peça for uma daquelas que podemos efetivamente tocar sem receber reproches dos vigias de galeria.
Não é o caso de pensarmos que existe uma hierarquia entre os sentidos. Como se o fato de estarem um em cima do outro indicasse que existiria alguma propensão a uma gradação baseada na lógica da importância. Os dois narizes estão embaixo da boca, a boca abaixo da orelha e o olho acima de todos os outros elementos. Se os narizes estão por baixo de toda a montagem, o que os diminuiria aparentemente em valor, eles vêm em dupla (o que não ocorre com os demais sentidos) e, além do mais, sustentam como alicerces os três outros elementos. A boca, se por um lado está ao meio entre os sentidos, está, ao mesmo tempo, no centro da escultura e se observarmos uma fotografia da obra, seria a primeira coisa que perceberíamos quando nos dedicássemos a olhar para a coisa toda. A orelha, intermedia a boca e o olho, e está disposta de um modo que nos leva a pensar que é maior que os outros elementos da escultura. E o olho, apesar de se situar acima de todos os outros sentidos, não causa maior impressão e é o menor de todos os componentes da escultura.
A boca, a orelha e o olho se equilibram sem dificuldade nos dois narizes que servem como que pernas para a estrutura como um todo. Estão plenamente ligados, soldados, e não mostram sinais de que vão sofrer alguma queda.
Mas, pode ser que a melhor maneira de entender essa escultura seja não separar os elementos que foram colocados propositalmente em uma disposição precisa. Se os sentidos nos fazem ser diferentes dos objetos inanimados e dos animais, isso ocorre porque não apenas apreendemos o mundo por meio deles – nós damos significados para o mundo quando os utilizamos. A escultura, tomada como um todo, lembra bem uma representação humana, com suas pernas, cabeça, tronco. E, ao mesmo tempo, remete às características dos sentidos que nos singularizam.
Mas, se assim for, certamente se trata de uma representação feminina.
A boca, logo acima das pernas, nos remete a outros orifícios. Aqueles lábios não nos enganam e, carnudos, são a representação de outra representação do que seria uma mulher. Uma metáfora de uma sinédoque.
O conjunto é especialmente harmônico e é feito, aparentemente, de cobre. E o tato, que não é aparentemente contemplado na escultura, muda de lado e se transforma na vontade mais importante do espectador da obra. Se é a representação de uma mulher, o que pode ser ou não ser, dependendo da interpretação, sentimos subitamente a vontade de tocar a coisa toda, se esse for o caso, só para tirar a dúvida.
II
A raça branca pensa que só ela possui sentidos.
Ela não olha, propriamente, outras raças: analisa. Uma visão que se proclama superior, pois é inclusive científica. A ciência de olhar os outros tem cor.
Sua audição até aceita outros ritmos, desde que possa se apropriar deles e transformar em algo seu – limpo, civilizado, melódico e harmoniosamente branco. O som, que era repleto de verdade, se altera e vira, de repente, música.
A dominação não tem, verdadeiramente, espelho. O lado de lá, nunca é o lado de cá. O preconceito, quando se refere à raça, corre sempre em via de mão única. A raça branca até finge ser possível um preconceito às avessas. Mas, no fundo, sabe que branco é branco.
Talvez a raça branca já nasça perfumada quando vem ao mundo.
Alguns brancos dizem conseguir identificar outras raças pelo cheiro. Sustentam que não é preciso muito esforço para desenvolver esta técnica e que, na verdade, ela tem algo a ver com a higiene. Certamente que os odores dos corpos dos homens, dizem os brancos, não são iguais. Dependem da cor. O bom branco finge não se importar tanto com isso. Com o cheiro dos outros. Tolerante, não reclama. Mas, por meio de um raciocínio que não pode evitar, um pensamento que lhe é próprio, preferiria que o mundo fosse mais perfumado.
Civilizada, a raça branca simula partilhar dos mesmos valores que todos. Talvez saiba que os valores de todos, na verdade, não passam de seus próprios valores e que, se tudo continuar como está, ela não tem muito a se preocupar.
O branco é um curioso.
Ouve falar que outras raças têm temperos diferentes. Está pronto para experimentar especiarias e trata a culinária de outras raças como alguma coisa inusitada. Seu paladar pode até se educar e permitir novas possibilidades, mas, de qualquer modo, quando o caso é o de misturar culturas gastronômicas, é a raça branca que domina e determina a lógica do gosto.
A raça branca é dada a dar piscadelas.
Tenta convencer, por meio desse truque, que tudo corre maravilhosamente bem. Que todos os homens compartilham dos mesmos princípios e que sentem o mundo da mesma forma. Sugere, nessa artimanha, que o branco está do lado de outras raças. Que a própria ideia de raça, talvez faça pouco sentido. As piscadelas da raça branca são sinais que pretendem, de propósito, criar certa sensação de igualdade quando, na verdade, essa raça sabe que domina completamente a lógica dos sentidos.
Nesses momentos, ela pensa, sem titubear, que seus olhos cínicos, via piscadelas, podem fingir não serem os do colonizador.
III
A raça branca pensa que só ela possui sentidos.
A raça branca acredita que enxerga mais longe.
A raça branca diz compor música, não sonoridade.
A raça branca somente enxerga a si mesma no espelho.
A raça branca se incomoda com o cheiro de outras raças.
A raça branca adere aos valores essenciais, criados por ela mesma.
A raça branca inventa o gosto, estabelece o paladar.
A raça branca pisca cinicamente os olhos, finge que não existe dominação.
IV
A raça branca não beija nunca outras raças, engole.
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