I
À esquerda: uma mulher e um espelho.
À direita: um animal alado e portas sucessivas.
Pode parecer que há simplicidade nisso, mas a técnica da composição, seus segredos internos, pode perfeitamente nos enganar.
Nitidamente cindida em dois hemisférios, esquerda e direita, a imagem se separa de um modo que quase podemos enxergar uma linha a dividir ao meio a composição.
Essa separação pode operar na lógica da superposição, como se a imagem pudesse dobrar-se sobre si mesma. Nesse caso, seria preciso vincar a linha que divide a composição e dobrar as duas metades do quadro, esquerda e direita, uma sobre a outra. Mulher/animal alado. Espelho/portas sucessivas.
Talvez nesse caso, um primeiro segredo da composição se torne mais evidente. Ao menos, um pouco mais evidente.
Nada melhor do que um espelho para refletir as incontáveis portas sucessivas. E, também, nada melhor que um animal alado para representar uma mulher que quer se desprender de um ambiente aprisionador.
O mistério desse jogo analógico, o modo próprio como a imagem funciona, a partir daí, pode começar a se desvelar: se trata obviamente de uma imagem labiríntica, e a mulher quer fugir dali.
II
A porta que a mulher abre nos dá a visão de um corredor infinito composto de inúmeras portas. E é justamente essa porta entreaberta, localizada no lado direito da imagem, que dá a sensação de profundidade à composição. Pode ser que cada porta aponte para um caminho, uma possibilidade, uma alternativa diferente para que rumo tomar. O problema é que tudo nos indica que qualquer das portas também abrirá para corredores infinitos compostos por inúmeras portas.
Toda tomada de decisão, nesse caso, a escolha de entrar ou sair por qualquer dos acessos, apenas nos movimenta em um labirinto aparentemente infinito de corredores e portas possíveis.
Existem dois tipos de labirinto. O labirinto que segue um único caminho e o que tem múltiplas direções. É possível dizer que o labirinto que tem uma única saída só pode ter uma única entrada. Caso contrário, a reversibilidade entre entrada e saída seria plenamente inviável. É um tipo de construção arquitetônica que leva a uma única resposta ao seu desafio. O labirinto de múltiplas direções, por outro lado, dá alternativas para a sua solução. Não há, nesse caso, uma resposta correta para seu enigma porque, como tem entradas e saídas diversas, é possível resolver o problema de diversos modos.
Um labirinto não é apenas uma figura arquitetônica. É, antes de tudo, uma imagem mental.
As portas dentro de portas da imagem, portas que vão ao infinito, compõem um labirinto inusitado. A primeira impressão seria a de que não haveria solução para resolvê-lo, afinal, ele se estende de um modo ilimitado. Porém, também pode-se pensar a coisa toda de outro modo nesse caso, de uma forma um pouco curiosa: qualquer das portas que se abrir será a solução do labirinto.
III
A criatura é estranha, apesar de nos parecer vagamente familiar. Tem quatro patas e asas para empreender voo. Seu rabo é longo e o corpo não é coberto por penas, mas sim por pelos. O bicho tem o porte de um cachorro mediano. Pode ser que se trate de um animal de estimação, de vida doméstica. Inclusive há quem suspeite de que é efetivamente uma possibilidade de cão, um daqueles animais exclusivos da espécie que só nascem a cada mil anos e que quando surgem, na sua improbabilidade, nos provocam as mais intensas dúvidas sobre a sua origem e significado.
De qualquer modo, apesar de possuir asas, nada prova que a criatura possa efetivamente voar, o que é certo, porém, é que ela não tem precedentes nos catálogos de ornitologia.
IV
Alguma coisa intriga na aparente leveza da imagem da mulher.
Ela veste uma saia longa com uma espécie de guirlanda composta de raízes de árvore e uma jaqueta de cetim de mangas bufantes violeta. Está descalça e seus seios estão nus. Seus cabelos, de um castanho claro, são encaracolados e combinam, perfeitamente, com as vestimentas.
Apesar de vestir a guirlanda de raízes de árvore, algo que poderia apontar para a sua fixação ao solo, sua imagem remete também a hipótese de voo, algo de menos pesado. A quantidade de ondas na jaqueta de cetim e na saia, na disposição dos cabelos e na rebeldia das raízes, nos remetem a flutuações maiores, se bem que ela está imóvel, como a posar para uma foto, apesar de seus pés quererem fugir ao chão.
V
O espelho parece ser inútil na composição. Ele nada reflete diretamente. As portas, os corredores, o quarto, as costas da mulher, tudo deve estar lá, mas isso é mais uma hipótese lógica que uma possibilidade plenamente verificável. Porém, sua função é fundamental. Existe algo de espelho em todo labirinto, pois os corredores, as portas, os quartos, tudo se repete na lógica dessas estruturas mágicas de aprisionamento.
Pode ser que exista algo de labirinto em todo espelho também. Delimitada a imagem no recorte de sua moldura, ela fica presa e, por alguns momentos, quando olhamos os espelhos, dão a impressão de que não se pode fugir dali: que o reflexo ficará eternizado em uma imagem captada no momento dos instantes.
Certamente, os espelhos, em geral, não capturam as imagens para sempre, sua lógica é a do momento, da eminência própria ao tempo.
Esse espelho, no entanto, é traiçoeiro. Tudo indica que o labirinto que ele reflete é infindável, com portas, corredores e quartos que escapam ao normal da temporalidade. E que ficam presos ali, na moldura de um infinito de possibilidades de entradas e saídas.
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