Rodrigo Suzuki Cintra

A Galeria Invisível - Cap. XV

Daum Casa com o seu Pedante Autômato “George” em Maio de 1920, John Heartfield está muito Contente com isso (Construção Meta-mech, segundo o Prof. Hausmann), 1920, (Grosz) Ou Amores Sinceros

 

I

Uma mão, talvez menos do que uma mão, um dedo, toca de maneira suave o seio direito de uma mulher. 

Pode ser que esse toque cause algum prazer. 

De fato, a mulher está claramente ruborizada ao olhar para o autômato ao seu lado. Além disso, sua boca está semiaberta e dá a impressão de que está ligeiramente encabulada, abrindo um sorriso forçado para o autômato – ela, de maneira nítida, não quer que ele perceba o que está acontecendo. Tudo leva a crer, aliás, que o robô não percebe o toque e também não é quem o realiza. O ângulo entre a mulher e ele não permite que ele veja a carícia. Além disso, a mão é por demais orgânica e está fora do alcance do autômato: é inviável sustentar que seja sua. 

Essa mulher é, sem dúvida, a nova esposa do robô. Ela se importa com o que ele pensa. Tanto que fica envergonhada com o toque. Mas isso não é suficiente para fazer com que ela afaste a mão que a acaricia. Pelo contrário, ela parece mover o corpo em uma posição em que a mão possa continuar o afago e, ao mesmo tempo, tornar mais difícil que o autômato veja a situação. 

Pode ser que o fato de estar vestindo apenas uma anágua e chapéu sinalize para uma mulher mais solta. O chapéu que ela usa é um daqueles apetrechos próprios para sair à rua, enquanto a anágua, que deixa seus pelos pubianos à mostra, aponta para uma situação mais íntima, em ambiente privado. Há algo de contraditório em estar vestindo um chapéu de sair e uma anágua de ficar, mas talvez essa seja a melhor maneira de caracterizar esta mulher. Alguém que pertence e transita com facilidade entre a rua e o interior da casa.

Podemos, também, tentar entendê-la a partir de outra ótica. Ela é daquele tipo de mulher que, sem ser propriamente gorda, possui carne em abundância. O tipo de mulher que parece efetivamente ser mulher. Porém, talvez o fator que mais aponte para a sua feminilidade não seja, curiosamente, suas curvas e nem suas carnes nos lugares corretos, mas sim, aquele rubor no rosto de quem, de algum modo, está traindo o marido. A feminilidade, nesse sentido, é obviamente dupla: (1) estar traindo o marido; (2) estar ruborizada por isso.    

 

II

O autômato é quase que exclusivamente uma complexa máquina de cálculos. Números e mais números aparecem em sua estrutura mecanizada. Seu corpo é feito de engrenagens e de peças de ferro. Não dá para saber ao certo, para falar a verdade, como as engrenagens operam, ou seja, como podem fazê-lo funcionar. No entanto, uma manivela acoplada a alguma espécie de antiga calculadora mecânica parece ser o modo de acionar toda a sua estrutura. 

Mãos estão acima de sua cabeça e tocam-lhe a testa. Tudo o que conseguem produzir, não obstante, é uma sequência de números que, coladas no rosto do robô, escondem o seu nariz. Essa máquina que copia por meio de mecanismos e engrenagens o homem de carne e osso, o homem orgânico, por assim dizer, está vestida, como podemos perceber, de maneira sofisticada, como se estivesse pronto para uma cerimônia. Veste uma casaca cinza, nitidamente bem cortada, uma camisa branca com o colarinho alto e uma gravata borboleta negra. 

Este autômato sempre se veste bem e pode se dizer que é requisitado pelas mulheres. 

Se por um lado, sua esposa está entretida com mãos de outro homem, outra mulher aparece escondida na imagem que compõe as relações amorosas deste casal. Podemos ver apenas seu perfil em um recorte pequeno, localizado na parte superior da imagem, na extremidade à esquerda. Seu rosto ocupa a totalidade de uma janela diminuta, feita para passar quase que despercebida. Não sabemos quase nada sobre essa mulher. Mas, não há dúvida de que se trata da amante do autômato. O curioso, nesse caso, é que o robô nunca, em nenhuma situação, aparentará qualquer espécie de vergonha por ter uma amante. A masculinidade, nesse sentido, é obviamente dupla: (1) estar traindo a mulher; (2) acreditar profundamente, de maneira absolutamente sincera, que não está fazendo nada demais.