Rodrigo Suzuki Cintra

A Galeria Invisível - Cap. XXI

O Rei Jogando com a Rainha, 1944 (Ernst) Ou A Consciência do Rei de Bronze

 

I

Esta é uma obra impossível.

 

II

Esta é uma obra realmente impossível.

 

III

Esta é uma obra verdadeiramente impossível.

 

IV

Esta é uma obra que não pode e não deve absolutamente ser possível.

 

V

A escultura feita de bronze é singular. Em um primeiro momento, a impressão que se tem e a de que seu valor está em uma análise simbólica dos elementos que a compõe. O rei, com chifres que lembram antigas mitologias, se apresenta, ao primeiro olhar, como o jogador de uma disputa de xadrez. Algumas peças desse jogo de tabuleiro se fazem perceber. Podemos notar, nitidamente, três peões, um cavalo, um bispo, uma torre e a rainha. 

A mão direita do rei é capturada pelo instante. As esculturas, em geral, quase sempre são incapazes de apontar para as contradições do movimento – na sua solidez e dimensão espacial. Essa obra, no entanto, aparentemente pode apontar para duas temporalidades diferentes: o rei está a movimentar a rainha, vai começar a dar o seu lance, ou, o rei acaba de mover a rainha e está a retirar a mão que empreendeu a jogada.  

É a mão esquerda do rei, no entanto, o elemento que provoca nos observadores uma sensação de estar diante de um mistério. Ela está disposta atrás do rei e do tabuleiro. A impressão que se tem é que ele está a ocultar alguma coisa: a mão está cerrada e propositalmente atrás do corpo. Há quem sugira que o rei segura uma peça de xadrez apenas e que a mão esquerda não devia incomodar tanto as pessoas que, inevitavelmente, quando se trata de observar essa escultura, chegam com os olhos bem perto da mão, na ânsia de encontrar uma resposta para esse enigma. 

O que o rei está a fazer com a rainha, começando a movê-la, ou, terminando de dar um lance, em verdade, apesar de ser o problema inicial que os observadores reparam, encobre a busca por outros significados para essa obra, cuja potencialidade chega a ser inimaginável. Nesse caso, é preciso levar às últimas consequências o modo como o artista dispôs os elementos que constituem o referido trabalho, mesmo que isso contrarie nossas certezas mais profundas. 

De todo modo, nesse curioso jogo de xadrez, parece ser necessário estar pronto para sacrificar quase todas as peças, inclusive a rainha (esquecê-las por completo), para tornar possível a vitória de um rei solitário e improvável. Deixar de pensar sobre as peças do potencial jogo é a primeira estratégia para entender um lance de gênio em uma partida sem precedentes na história da arte. Mas, nesse caso, deve-se fazer um compromisso com a imaginação artística e negar a ditadura enfadonha do real. 

É preciso, aqui, levar esse rei a sério. 

Pois, em verdade, é exatamente disso que se trata (como em qualquer jogo de xadrez): a vida do rei.

 

VI

Na lógica interna da obra, dois níveis de representação: dois níveis de significação.

Em um primeiro momento, olhando a escultura como um todo, o rei é o jogador de uma disputa de xadrez. Aparece da cintura para cima e, em sua estatura e posição – perpendicular ao tabuleiro – é a figura que pode movimentar as peças, é o sujeito da realidade externa ao jogo. O tabuleiro, neste caso, para ele, se mostra como o objeto que está a requerer sua atenção. De fato, neste nível de representação, o rei é o único personagem efetivo da escultura que seria composta de dois elementos essenciais: o jogador e o tabuleiro. 

A obra é a representação de um rei a jogar xadrez. 

Porém, o mesmo rei, por sua projeção da cintura para cima a partir do tabuleiro, pode muito bem ser entendido como uma das peças do próprio jogo. Neste caso, é claro, também é o elemento mais importante da obra, na medida em que, pelas regras do jogo de xadrez, é a sua captura – xeque-mate – que acaba com a disputa e estabelece o vencedor. Porém, se esse for o caso, ele é mais uma das peças que podemos enxergar na base-suporte, pois é certo que podemos distinguir, perfeitamente, três peões, um cavalo, um bispo, uma torre e a rainha. Se ao olharmos para a escultura acabemos por entender que se trata de representação exclusiva do tabuleiro e suas peças, então, o rei já não é o personagem único. E, apesar de sua importância na disputa em potencial, evidente pelas regras internas do jogo, toda a obra se referiria à realidade de uma montagem de um momento de uma partida de xadrez. 

A obra é a representação apenas de um tabuleiro de xadrez. 

Este rei, portanto, na mesma obra, consegue a façanha impossível de ser sujeito do jogo e objeto do jogo ao mesmo tempo, segundo a lógica inusitada com que a escultura foi pensada. Uma obra absolutamente improvável em que o personagem-sujeito é objeto de si mesmo na estrutura, colocando em xeque inadvertidamente a própria racionalidade que se propõe a partir da separação sujeito/objeto, que nesse caso não faz o menor sentido. Uma escultura absolutamente única, singular, que não deveria ser possível, realizável, e que por ser impensável, foi plenamente possível de ser moldada. 

 

VII

Uma obra traiçoeira. 

Quando pensamos que o rei é o jogador, ele se mostra a peça de xadrez do próprio jogo. Quando pensamos que ele é uma peça de xadrez, ele é o próprio jogador que movimenta as peças escuras. 

Mas, o curioso de verdade é pensar que o próprio rei-jogador é que movimenta a si mesmo no tabuleiro. De alguma forma absolutamente desconcertante, trata-se da primeira escultura na história que contém uma característica impensável: é uma peça que tem consciência. Afinal, pode mover e se propor a si mesma em jogo. É um rei que ao mesmo tempo em que calcula a sua própria ação, movimentação, para ganhar um jogo absolutamente cerebral, movimenta-se pelo tabuleiro, determinando sua própria posição. Trata-se de um rei a jogar consigo mesmo, raciocinando, talvez, sobre qual seria a melhor jogada para ganhar a disputa, como ele deve proceder e se posicionar no jogo que se propõe. 

De algum modo, é um rei inusitado que dobra-se sobre si e tenta determinar o que fazer consigo mesmo. A posição em que se encontra na lógica da escultura, como sujeito-jogador e como peça do tabuleiro, autoriza uma reflexão, um questionamento, absolutamente único que só quem tem consciência pode elaborar: o que eu devo fazer de mim mesmo?

Como foi possível fazer com que um objeto inanimado, um pedaço moldado de qualquer coisa sem vida, uma mera estrutura de cobre, adquirisse alguma forma de consciência de si?

 

VIII

É preciso dizer, sobre esta representação de um possível tabuleiro de xadrez, que nada visualmente nos autoriza a imaginar se a partida está no meio-jogo ou nas finais. No entanto, estamos certos que a disputa já começou. O tabuleiro está armado, não há dúvida, mas não podemos distinguir as casas claras e escuras que compõem as fileiras e colunas. Isso parece não importar muito – as regras desse jogo parecem ser outras. De algum modo, ao que parece, as casas são plenamente desnecessárias para este jogo específico que a escultura representa e a tonalidade monocromática de toda a composição nada interferiria na composição e lógica de uma partida. 

Temos a impressão que não é bem a posição que as peças ocupam que determina o valor de um lance ou que determinará quem será vencedor. Este jogo de xadrez, curiosamente, parece não se guiar bem pelos espaços, basta perceber que não tem casas, e, apesar de não podermos estar certos de quem é o adversário em potencial do rei-jogador, temos a nítida impressão que o rei ganhará o jogo. 

Seus braços longos parecem ser resolutos e envolvem todo o tabuleiro dando a impressão de que domina a situação. O corpo esguio não se curva nem um pouco, afronta o adversário, e sua cabeça sequer olha para o tabuleiro, mas sim, diretamente para o opositor em potencial, que ainda que invisível, é, sem dúvida, prontamente desafiado a cada lance.  

Os chifres são por demais simétricos, longilíneos, rígidos e, apontando para cima, dão uma sensação de que este rei tem poder de verdade. São chifres muito particulares, pois, no fundo, são inclusive, viris. 

O rei-jogador domina a situação, não há dúvida. Está tão integrado ao jogo que se propõe, inclusive, como peça no tabuleiro. Sujeito e objeto se confundem aqui. É uma posição arriscada, por certo, afinal, o que significaria para este jogador não muito habitual a hipótese de ser colocado em xeque-mate no fim da partida?

E, no entanto, temos a nítida impressão que isso não vai acontecer. De algum modo surpreendente, trata-se de uma disputa e tanto – o rei está jogando xadrez nem tanto contra um adversário em potencial, mas sim contra a tradição imemorial que define os limites da arte perante o real. Uma peça inanimada não pode ter consciência de seus próprios atos e agir de acordo com eles, reza a tradição em que se inscreve a verdade do real. 

Mas, esse rei está a colocar em xeque-mate esse pressuposto aparentemente inabalável. 

O fazer artístico da escultura, aqui, não representa o real e nem cria objetos novos que não existem. Esse rei supera o não existir e saindo do mundo dos objetos inanimados, fugindo da morte eterna a que todos os seres sem vida estão fadados, se auto-inventa e se afirma no mundo como um objeto consciente e vivo. Um pedaço de alguma coisa sem vida, incapaz obviamente de pensar sobre qualquer coisa, inclusive sobre si, subitamente e sem maiores avisos acorda para o mundo e quer refletir sobre o que fazer consigo. A inércia dos objetos inanimados, uma das convenções mais arraigadas da percepção costumeira que as pessoas têm sobre o real, é prontamente colocada em xeque por esse rei que desafia as regras do jogo tradicionais. Curioso notar que esse rei se afirmou no mundo da vida por meio de um ato de rebeldia, e que essa não submissão, em geral, é própria dos homens compostos de carne e osso (e não de objetos feitos de cobre, é claro). Ao negar a inata inércia dos objetos inanimados – ele determina seu próprio movimento no tabuleiro – o rei contraria todo um mundo, isso é verdade, mas, no entanto, é o fato de pensar a si mesmo, a reflexão, o que lhe retira de uma eterna condição estática.  

E a arte dá, mais uma vez, uma lição na realidade, clamando pela vida, ultrapassando os limites do código verdade, nesse mundo cuja morte costumava ser a única certeza. Tudo morre, ou sempre esteve morto. O rei triunfa nessa partida de xadrez com a essência das coisas, e saindo de uma morte inquestionável, completamente do nada, da profunda ausência de inteligência, do cobre mais inanimado, inverte a lógica do jogo, e diz sim à vida, à vida, à vida!

 

IX

Em algum lugar, um rei jogando com um rei jogando com um rei jogando com um rei inverte a regra do jogo que inverte a regra do jogo que inverte a regra do jogo que inverte a regra do jogo e diz sim quando se dizia não se diz sim quando se dizia não se diz sim quando se dizia não se diz sim em hipótese alguma hipótese alguma hipótese alguma hipótese do real do real do real do real do impossível será possível do impossível será possível do impossível será possível do impossível será possível do impossível será possível nascer do nascer do nascer do nascer da morte da morte da morte da morte a vida consciente da vida consciente da vida consciente da vida.

 

X

Em algum lugar, um rei jogando com um rei inverte a regra do jogo e diz sim quando se dizia não, em hipótese alguma do real, do impossível será possível nascer da morte a vida consciente da vida. 

 

XI

Esta é uma obra que pode e deve absolutamente existir.

 

XII

Esta é uma obra que verdadeiramente existe.

 

XIII

Esta é uma obra que realmente existe

 

XIV

Esta é uma obra que existe.