Rodrigo Suzuki Cintra

A Galeria Invisível - Cap. XVII

Por que não espirrar, Rose Sélavy?, 1921, (Duchamp) Ou O espelho do enigma

 

I

A gaiola branca de ferro aprisiona 152 cubos de mármore brancos que lembram cubos de açúcar. Cada cubo ostenta uma pequena inscrição que dá notícia de sua origem: made in France. Houve um tempo em que isso poderia significar que eles eram potencialmente perigosos. Hoje, talvez, isso não deva dizer mais nada. Os dois poleiros de madeira lembram que se trata, afinal de contas, de uma gaiola, mas não sendo úteis para nada que está presente na composição – na estrutura nada se liga a esses poleiros –, eles acabam por remeter ao que não está presente: sente-se, obviamente, a ausência dos pássaros. 

Dentro da gaiola, um osso de choco também nos remete ao sequestro dos pássaros nesse readymade. O osso de choco é uma espécie de suplemento alimentar altamente necessário para a saúde das aves domésticas. Dizem que ele é rico em cálcio e consiste em uma lâmina comprida que provêm de moluscos marinhos, chocos ou lulas. 

Um termômetro de mercúrio completa a gaiola. Apesar de ser um utensílio para medir a temperatura, esse instrumento de medição não está, nesse caso, marcando o registro da temperatura da gaiola. Defender, então, se está frio ou calor ali dentro é apenas uma questão de argumentação. Sua disposição, acima dos cubos de mármore e dos poleiros, o coloca em evidência, dando a sensação de que é um componente insubstituível e absolutamente relevante para a compreensão da obra toda, mas, na prática, não aponta para entendimentos maiores.

A obra em questão, essa aglutinação feita de materiais prontos dispostos de uma forma específica, pode muito bem ser compreendida a partir de uma perspectiva simbólica. Talvez, inclusive, essa seja a única alternativa para uma interpretação mais coerente. 

Os cubos de mármore são muitos, exagerados, mas parecem ter sido colocados em um número exato e arbitrário: 152. Eles sugerem o peso na obra, sem dúvida.

Feitos de mármore, esses cubos lembram torrões de açúcar. Daquele tipo que quando adicionamos ao café, no líquido quente, demoram um pouco a derreter: tem uma saborosa temporalidade própria, mas, a bem da verdade, são inertes. Talvez, então, seu formato e sua cor branca, esses elementos que são essenciais aos torrões de açúcar, mas que nesse caso apenas falsificam o doce, indiquem mais para uma promessa de doçura do que para uma doçura propriamente dita. 

O termômetro pode apontar para o calor ou para o frio. Como a gaiola é preenchida por cubos de mármore, parece ser a falta de calor o que está em jogo. Essa interpretação vai de encontro com a ausência de pássaros evidenciada pelos poleiros inúteis e pela própria estrutura da gaiola em si, que não os contém. 

Os poleiros, aliás, em uma observação mais detida, não estão dispostos ao centro da gaiola. Estão por demais colados a sua superfície superior, rentes a trama de ferro de cima, e também muito deslocados: um deles está muito à esquerda, ocupando o ângulo superior correspondente e o outro muito à direita, ocupando o outro ângulo superior. De qualquer modo, nessa disposição específica, eles não servem para proporcionar aos pássaros qualquer sensação de possibilidade de movimento. As gaiolas, em geral, têm poleiros. O curioso dessa gaiola é que os poleiros não podem cumprir a sua função dada a disposição em que se encontram. O que nos leva a indagar, inevitavelmente, sobre uma utilidade real para qualquer poleiro – todos são a negação do movimento para os pássaros. Mesmo o osso de choco se torna altamente inútil para a composição, uma vez que não pode servir a possíveis  pássaros que estivessem engaiolados. 

A gaiola, então, é fria. É aparentemente doce, mas, no fundo é feita de mármore, sem sabor. Parece ser leve, é importante perceber que está suspensa na composição, mas tem um peso considerável (152 cubos de mármore). Tem poleiros que são, em verdade, inúteis (como todos os poleiros, aliás) e um osso de choco que serve apenas para fazer a mera manutenção da vida de pássaros domésticos em potencial, mas pássaros não existem. 

Essa gaiola, como bem se pode perceber, é no fundo o avesso da liberdade. Todos os elementos que a compõem podem aparentar algo de calor, doce, livre, bem cuidado, mas ela não passa de um lugar que é o contrário disso, terrível para os pássaros – que simbolizam a liberdade de voar: a gaiola é fria, sem sabor, aprisionante e mal cuidada. 

Os elementos que compõem a gaiola, assim, inversamente, nos remetem a liberdade de pássaros que não aparecem de maneira evidente na obra. O que se vê sem muita dificuldade, na verdade, aponta para o que não se vê. Uma forma de olhar que se perfaz somente por meio da ausência.  

 

II

Refletida em um espelho disposto embaixo da gaiola, que está levemente suspensa, uma inscrição chama a atenção dos observadores, até porque, inicialmente, não se compreende o que está escrito. A inscrição, provavelmente devido ao efeito próprio da natureza dos espelhos, está invertida, o que dificulta obviamente a sua compreensão. Claro que isso significa que a gravação está escrita de modo habitual e corrente embaixo da gaiola, e o efeito do espelho, apesar de tentar reproduzir o real, é incapaz de satisfazer completamente a ideia de reprodutibilidade. O que significa dizer que por mais que a estrutura toda possa ser reproduzida indefinidamente, como em um espelho que tenta refletir fielmente nossas características, há algo de exclusivo na primeira vez que a obra foi pensada.

É bom salientar que as letras que compõem a inscrição na gaiola suspensa, aquelas que serão invertidas no espelho, podem parecer, inicialmente não fazer muito sentido. Mesmo quando as lemos como uma frase, elas parecem oferecer pouco auxílio na interpretação da obra em si. Seria uma frase aparentemente aleatória, se não fosse o fato de que corresponde exatamente ao título que o artista deu para a obra. Claro que os títulos de obras de arte podem ser mais ou menos evidentes ao tentar representar por meio de palavras uma pintura, uma escultura, uma fotografia ou um readymade. No entanto, de qualquer modo, são boas vias de acesso para começar a tentar compreender a coisa toda. 

Why Not Sneeze Rose Sélavy? (Porque Não Espirrar Rose Sélavy?)

O título, irreverente, parece apontar menos para uma explicação da obra como um todo e mais para a introdução de um elemento adicional à   lógica da composição. Afinal, está grafado na gaiola e, ao mesmo tempo, é o que se pode ler de maneira invertida no espelho que está disposto logo abaixo da estrutura.

A frase é, na verdade, uma simples questão. Evoca uma mulher, Rose Sélavy, e pergunta sobre porque não se deve espirrar. Este caráter interrogativo poderia parecer, à primeira vista, que o artista está realmente a se questionar sobre a atividade de espirrar, sobre a oportunidade ou não de empreender essa ação banal. 

Ocorre, no entanto, que o tom da pergunta, separada de qualquer repertório de outras frases, se por um lado aponta para um caráter um tanto quanto curioso da natureza do espirro, por outro, se situa entre o chiste e a rebeldia.

Há algo de rebelde na frase, como se ela indicasse uma desobediência a algum código de conduta, como se ela problematizasse uma questão que não se coloca, habitualmente, sob regime de dúvida. Em outras palavras, a frase contém em si alguma espécie de afronta a alguma instituição superior e respondê-la com sim/não pode significar o primeiro passo em direção a um universo menos regrado.

É claro que se existir uma regra a nos impedir de poder espirrar, trata-se de uma normatividade profundamente rígida. O espirro parece ser coisa propriamente humana e é absolutamente corriqueiro. Existe, assim, algo de cômico, uma certa brincadeira, em pensar em uma proibição do espirro. Há qualquer coisa de ridículo nisso, por óbvio. Cedo ou tarde, todos os homens e mulheres vão espirrar. Portanto, a pergunta feita à Rose Sélavy é um tanto engraçada: é impossível que seja totalmente séria, e pode soar, aparentemente, como uma forma de pilhéria. 

Mas, o curioso, mesmo, é que o espirro contém, também, um teor altamente anárquico. Em geral, não podemos planejá-lo de antemão e estabelecer sua intensidade. Não se pode, efetivamente, espirrar de propósito. Existe, portanto, sempre alguma coisa de surpresa no espirro, algo de inesperado. E perguntar sobre a sua oportunidade certamente é um despropósito. 

De modo que fica provado que a pergunta em análise é prontamente inútil. Ou seja, Por que não espirrar, Rose Sélavy?, é inútil. Completamente inútil. Como gaiolas brancas recheadas de cubos de mármore que lembram torrões de açúcar brancos e que contém também poleiros inviáveis, osso de choco e termômetro. 

 

III

Controlar um espirro é tão despropositado quanto enjaular um pássaro. Pelo menos, é isso que os torrões de mármore parecem determinar. Claro que a temperatura, a ser medida pelo termômetro de mercúrio, influencia a quantidade de pássaros na gaiola. E, como não podemos ver nenhum pássaro, isso bem pode significar que Rose Sélavy não vai espirrar, mesmo que esteja com toda a vontade do mundo de assim o fazer. A obra de arte em questão faz um acordo entre Rose e os pássaros. Ela não espirra e o autor não aprisiona as aves. Os pássaros não têm toda a vontade do mundo de serem aprisionados. É preciso ser muito idiota, espirrar muito, para pensar que ossos de choco trocariam sua prisão pela liberdade de poder voar como pássaros.  

 

IV

Refletir em um espelho a frase Por que não espirrar, Rose Sélavy? é um truque e tanto. 

O espelho reflete a própria obra em seu mais determinante detalhe, seu título, mas o faz apesar de não refletir a própria obra. Não se enxerga nada da composição efetiva, a gaiola e seus componentes, a partir desse espelho. 

É um espelho curioso, no mínimo. Reflete a obra, mas não a representa de maneira alguma. 

Trata-se, é claro, então, de um espelho que não é espelho. É certo que não cumpre essa função.  

E o pior: vai criando caso, causando estupefação, agredindo o observador, por fazer isso às avessas.