(Colinas como elefantes brancos de Hemingway)
– Acha, no duro, que tudo correrá bem e seremos felizes então?
Jig para o norte-americano
Seria preciso contar toda a história que está por trás do que Hemingway propositalmente deixou de relatar neste conto em que o autor sequestrou todo conteúdo?
O conto é quase exclusivamente composto pelo diálogo entre um norte-americano e uma moça chamada Jig. Estão em uma estação de trem na Espanha a aguardar o embarque. A todo momento, eles conversam a respeito de certa cirurgia que ela vai realizar. O norte-americano tenta consolar sua companheira de diversos modos, chega, inclusive, a advogar pela simplicidade da intervenção cirúrgica.
O artifício de Hemingway, neste conto, é claro. Em nenhum momento os personagens falam explicitamente qual é a cirurgia que Jig irá fazer. As frases ficam todas meio que assemelhadas. O norte-americano sempre tentando minimizar o impacto da cirurgia, e ela, aparentemente com mais dúvidas, querendo saber se, no fim das contas, tudo vai dar certo.
Não é preciso muito, pelas frases dos dois, principalmente porque a cirurgia parece que envolve também o norte-americano, para descobrir qual é o mistério do conto. Jig está grávida (o que também não é mencionado na narrativa) e tudo leva a crer que ela, com o apoio de seu companheiro, irá abortar.
Pensando o conto desta maneira, as frases pouco significativas de Jig, seu comportamento absorto, certa explosão contra o norte-americano, tudo isso ganha novo significado pois estamos diante de uma mulher que está com a cabeça em assuntos mais profundos.
O conto inteiro tem cerca de cinco páginas apenas e a duração de exatos trinta e cinco minutos a julgar pela informação que recebemos ao começo, em que se diz que o expresso vindo de Barcelona demoraria quarenta minutos para chegar e, ao fim, quando a moça do botequim informa que o trem chegará em cinco minutos. Os personagens dialogam com cordialidade, mas, é impossível não perceber a tensão no ar. Uma tensão que ultrapassa as palavras que são ditas.
A cirurgia de Jig os assombra.
Então, conversar normalmente é fatalmente complicado. Jig oscila entre a concentração na conversa e a dispersão. Em dado momento, parece não aguentar mais falar sobre o assunto e pede rispidamente para que o norte-americano se cale. O título do conto, “Colinas como Elefantes Brancos”, é uma referência a uma das tentativas de Jig em falar sobre outra coisa que não sobre a cirurgia. Porém, não podemos nos enganar, é a grande metáfora do conto e, ao mesmo tempo, um título absolutamente neutro, que não aponta, a princípio, para o aborto que Jig irá se submeter.
Sempre achei que o título deste conto, após percebermos o enigma por trás dos diálogos, era fabulosamente bem inventado. Ele corrobora em deixar a questão que nunca aparece explícita, o aborto, de uma maneira misteriosa, ao mesmo tempo que opera como uma metáfora para a situação de Jig de maneira brilhante.
Neste sentido, outro fator interessante é o modo como os diálogos são dispostos. O autor tinha perfeito controle sobre a arte de retratar diálogos. “Colinas como Elefantes Brancos” é um verdadeiro exemplo de toda a maneira de Hemingway escrever. Em outras palavras, representa, qual modelo, o estilo peculiar de Hemingway: uma escrita seca, livre de rodeios, moderna e realista.
É evidente, por outro lado, que uma série de elipses nestes diálogos possibilitam especular sobre uma história maior. Aí está a chave do conto. Ao negar explicitar a motivação, o objeto dos diálogos, e as circunstâncias dos personagens, pois a história tem uma limitação temporal, o conto se abre para um universo de interpretações distintas. Todo mundo que o lê tenta inventar na própria cabeça qual é a história por trás dos personagens. Hemingway nos presenteou com uma obra aberta em que, a partir do que não se revela, somos obrigados a colocar em jogo nossa imaginação. A partir do silêncio e de frases pouco significativas, o autor tece um enredo poderoso do não-dizer. Ao nos negar contar a história de maneira explícita, Hemingway conquista, através de um mistério, o leitor. E, talvez, seja esta a história mesma, incompleta, elíptica, indireta, peneirada até o limite do diálogo mais superficial, a verdadeira história. Um mero momento na vida de um casal, em que, apesar das dúvidas mais profundas, tudo não passe de jogar conversa fora.
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